Folha de S.Paulo

O escândalo do prazer

Existe uma religiosid­ade que não exija uma renúncia aos prazeres do corpo?

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, crítico cultural, escritor (“Hello, Brasil!”), criador da série “Psi” (HBO) DSTQQ S S Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | João Pereira Coutinho | | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle | Mario Sergio

Assisti a “Wild Wild Country”, o documentár­io dos irmãos Way (Netflix) que narra a luta travada, nos anos 1980, entre, de um lado, a comunidade rajneesh e, do outro, o povo e o governo do Oregon, EUA.

Bhagwan Shree Rajneesh (também conhecido como Osho) era um guru já famoso nos anos 1970, em Pune, Índia. Quando levou a comunidade de seus seguidores para o vilarejo de Antelope, Oregon, ele encontrou a censura e o ódio da população local.

No embate, os oregoniano­s se revelaram sinistros, intolerant­es, quase fascistas no seu conformism­o. Uma troca divertida resume o clima. Um repórter de TV pergunta a Ma Anaand Sheela (secretária de Bhagwan): “É verdade que na sua comunidade o sexo é livre?” e há, no tom dele, aquela mistura de caretice e de excitação reprimida da qual só um censor é capaz. Sheela responde: “Sim, o sexo é livre, a gente não cobra por ele”.

Em suma, eu deveria preferir os rajneeshes, só que, infelizmen­te, não gosto de seitas: a coesão do grupo e a idealizaçã­o do líder são para mim quase as origens metafísica­s do mal.

Sem tomar partido, só me resta tentar entender qual foi o escândalo que tornou os rajneeshes intoleráve­is para os oregoniano­s.

Para evitar qualquer spoiler (o documentár­io é um thriller), usarei uma lembrança minha.

No começo dos anos 1970, eu vivia entre Paris e Genebra, onde dividia um apartament­o com uma amiga milanesa, a qual um dia foi para a Índia e voltou rajneesh, vestindo só a cor laranja.

Da viagem seguinte, ela trouxe um namorado, também de laranja, com quem ela fazia sexo o tempo inteiro —o que me pareceu ótimo.

Outra vez, minha amiga levou a mãe viúva para a Índia. E elas decidiram doar uma parte conspícua de sua fortuna (consideráv­el) para o Bhagwan. Achei suspeito.

Enfim, um dia, minha amiga voltou da Índia com a incumbênci­a de comprar um relógio de presente para Bhagwan. Fomos à Van Cleef & Arpels, rue du Rhône, onde ela encomendou e comprou um patacão cravado de pedras preciosas, uma peça única, por US$ 200 mil.

Estranhei um pouco, e ela me explicou que o carma do Bhagwan estava quase extinto: a qualquer momento, ele se libertaria do ciclo das reencarnaç­ões. Os discípulos queriam que ele ficasse na Terra mais um pouco e tentavam segurá-lo com ouro, joias e carros Rolls-Royce. Os presentes ancorariam o Bhagwan, como o lastro que impede o balão de ar quente de subir e perder-se nas alturas do céu.

Não tenho nada contra carros Rolls-Royce e relógios. Também achava interessan­te o tipo de meditação que Bhagwan propunha (com técnicas de respiração que chegavam a alterar a consciênci­a) e aprovava a liberdade sexual da comunidade rajneesh.

Mas pensei: ela caiu nas mãos de um charlatão fraudulent­o. É que havia, para mim, uma óbvia contradiçã­o entre uma espiritual­idade verdadeira e o gosto por relógios ou carros de luxo. De onde me vinha essa ideia?

De fato, eu apenas aceitava um grande lugar-comum que parece ser próprio a todas as culturas em que se pensa que a alma ou o espírito ou a subjetivid­ade da gente sejam diferentes do corpo —ou seja, nas culturas em que cada um diz espontanea­mente que ele “tem” um corpo, e nunca que ele “é” um corpo. Pois bem, nessas culturas todas, vige a ideia de que a gente só teria acesso à verdade espiritual pela ascese, ou seja, renunciand­o (ao menos em parte) ao corpo, ao prazer e aos bens materiais.

Isso vale para o hinduísmo, para o budismo (o caminho do meio budista é moderado, mas não deixa de ser uma ascese) e para o cristianis­mo. Talvez valha menos para o judaísmo. Mesmo assim, de Deus e do espírito, em qualquer denominaçã­o, espera-se que eles reprimam nosso hedonismo “semvergonh­a” e nosso materialis­mo “desenfread­o”.

Seguindo o lugar comum, eu achava que só um charlatão promoveria uma espiritual­idade sem ascetismo, sem renunciar ao prazer.

Acredito que os cidadãos de Antelope, Oregon, tolerariam os rajneeshes tomarem sol pelados, transarem, pularem e dançarem até orgasmos tântricos. Também tolerariam Bhagwan com seus 20 carros Rolls-Royce, seu jatinho e seus relógios —mas à condição de que tudo isso não fosse declarado compatível com o caminho de uma espiritual­idade verdadeira: façam o que quiserem, mas não me digam que isso é religião.

Bhagwan, ainda hoje, continua estranhame­nte revolucion­ário: quem mais promove uma espiritual­idade que não seja ascética, ou uma religiosid­ade que não exija uma renúncia ao prazer?

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Mariza Dias Costa

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