Nicarágua imprevidente
Difícil não constatar uma razoável dose de ironia no fato de que o motor da recente onda de protestos contra o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, tenha sido sua tentativa de implementar uma reforma da Previdência, após recomendação do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Trata-se de um líder, afinal, identificado com os governos ditos bolivarianos da América Latina, em geral adeptos da retórica anti-imperialista e críticos das receitas de austeridade orçamentária.
Ortega ainda tentou um meiotermo: aumentou as contribuições de trabalhadores e patrões para o INSS local, mas não mudou a idade mínima de aposentadoria. Não agradou a nenhum dos lados, e o empresariado que lhe era simpático apoiou o levante nas ruas, cujo número de mortos pela repressão policial pode ter passado de 40.
Exemplos não faltam na região para demonstrar como o redesenho dos sistemas previdenciários constitui um penoso processo político, seja qual for o matiz ideológico do governo de turno.
Em dezembro, Mauricio Macri conseguiu aprovar sua proposta no Congresso argentino, não sem violentas manifestações que chegaram a suspender a votação.
No Brasil, o governo de Michel Temer (MDB) listava a reforma como prioritária. Diante da incapacidade de garantir os votos parlamentares necessários, por ora deixou de lado a empreitada —e parece difícil que volte a ela.
O mandatário nicaraguense preferiu, entretanto, recorrer a um decreto (depois revogado) para impor as mudanças, o que fez recrudescer a indignação popular. O expediente, aliás, é típico de um governante que, nos últimos anos, tem se apropriado das instituições para a perpetuação no poder.
Convém recordar que Ortega ganhou proeminência justamente por combater uma longeva ditadura, a da família Somoza, derrubada em 1979 pela Frente Sandinista de Libertação Nacional.
Após um mandato de 1985 a 1990, só retornou em 2007 à Presidência, da qual não se mostra disposto a sair. Em 2014, obteve da Corte Suprema de Justiça, que se tornou um apêndice do Executivo, o aval para a reeleição indefinida. No último pleito, em 2016, a principal coalizão opositora foi barrada.
Ao que tudo indica, propôs o ajuste mais brando na Previdência para buscar algum equilíbrio orçamentário e manter a aliança com o empresariado, sem que isso soasse como traição ao passado revolucionário. O que lhe importa, com efeito, é continuar mandando, à esquerda ou à direita.