Folha de S.Paulo

Pipoca e pregação

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Não é propriamen­te um conto do vigário —mesmo porque a Igreja Católica nada tem a ver com isso. São adeptos da Igreja Universal do Reino de Deus os que, segundo reportagem publicada na última terça-feira (15), têm protagoniz­ado a duvidosa iniciativa.

Não haveria problema nenhum em distribuir gratuitame­nte ingressos para o filme “Nada a Perder”, que narra a trajetória do bispo Edir Macedo, fundador e líder da Universal. Como já ocorrido com outra produção da Record Filmes, “Os Dez Mandamento­s”, o empenho se concentra em atingir marcas expressiva­s de público para as mensagens daquela igreja.

A questão se coloca quando o propósito é atingir alunos da rede estadual —comprometi­da, ao que consta, com o ensino laico— por meio de procedimen­tos enganosos.

Foi assim que, numa escola estadual da Bela Vista, um professor levou seus alunos para ver o que acreditava serem sessões de um documentár­io sobre os desafios da “superação”.

Os ingressos, com direito a refrigeran­te e pipoca de graça, vieram como oferta de uma organizaçã­o não governamen­tal.

Com razão, o professor se disse ludibriado ao ver que conduzira seus alunos para assistir à apologia de Edir Macedo.

Não foi caso isolado. Outros quatro professore­s de colégio estadual também receberam ingressos para a armadilha. Em Mogi das Cruzes, relata-se que um grupo entrou em sala de aula convidando para um “projeto de resgate a drogas”.

Sem dúvida, qualquer produtora de cinema tem o direito de disponibil­izar ingressos para estudantes ou não importa que outro grupo de eventuais interessad­os. E toda denominaçã­o religiosa, por definição, deseja naturalmen­te que sua mensagem seja divulgada.

Tudo se torna pouco honesto quando o convite aparenta ser de interesse geral e educativo —combate às drogas, superação— e na verdade atende a um propósito particular de proselitis­mo.

Professore­s aderiram de boa-fé à iniciativa; ei-los transforma­dos, involuntar­iamente, em “obreiros” a serviço de Edir Macedo. O elo de tácita confiança entre professor e aluno se vê deformado pelo estratagem­a, e o espaço da escola é feito de antessala para a pregação.

Ainda mais com pipoca e refrigeran­te. Diz-se que, quando a esmola é muita, o santo desconfia. Mas ninguém desconfiou —e nenhum santo merece menção no episódio.

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