Folha de S.Paulo

‘Crime político foi esquecido’, diz mecânico que abrigou vítimas

Ex-sindicalis­ta afirma ter ajudado Stuart Angel e Lamarca durante a ditadura

- -Nicola Pamplona

rio de janeiro Foi na manhã do dia 14 de maio de 1971, ao entrar no ônibus rumo ao trabalho, que o mecânico Sebastião Braz diz ter visto pela última vez o homem que conhecia apenas como Pedro, com quem havia ficado até tarde da noite anterior discutindo a situação política do país em sua casa.

O homem lhe fora apresentad­o cerca de dois anos antes por um taxista amigo chamado Pedro —daí o codinome— e passou a se abrigar em sua casa com frequência. Braz sabia que ele participav­a da luta armada contra a ditadura militar, mas essa era a única informação que tinha sobre sua vida.

“Acordei no horário do trabalho, ele acordou também, tomamos um cafezinho e descemos juntos até o ponto do ônibus”, conta ele. “Me lembro que, quando eu entrei no ônibus, eu dei tchau para ele e aquela foi a última vez que eu o vi.”

Braz diz ter descoberto apenas em 1979 que o verdadeiro nome de Pedro era Stuart Edgar Angel Jones, uma das 434 pessoas que perderam a vida ou desaparece­ram por perseguiçã­o política durante os governos militares no país, de acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

Ainda na manhã de 14 de maio de 1971, horas depois de se despedir de Braz, Stuart seria preso e levado à Base Aérea do Galeão, onde foi visto pela última vez.

Segundo as investigaç­ões, foi barbaramen­te torturado, em um dos episódios mais conhecidos da ditadura em virtude das denúncias feitas na época por sua mãe, a estilista Zuzu Angel, morta em 1976 e também listada pela comissão entre as vítimas da ditadura.

Memorando da CIA (agência de inteligênc­ia americana) divulgado no último dia 10 revela que a política de “execuções primárias” de adversário­s do regime militar já contabiliz­ava oficialmen­te 104 vítimas no governo Emílio Médici (1969-1974) e viria a ser avalizada pessoalmen­te pelo seu sucessor, Ernesto Geisel (1974-1979).

O documento levou ex-integrante­s da Comissão Nacional da Verdade a pedir audiência com a presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministra Cármen Lúcia, para solicitar a revisão da Lei da Anistia, e a criticar os Estados Unidos por falta de colaboraçã­o durante a apuração das mortes durante a ditadura.

Braz conta que se filiou à Juventude Comunista em 1953, levado por colegas de trabalho em uma fábrica de vidro, apenas nove dias após chegar ao Rio vindo do Piauí. Em 1964, dirigente sindical já filiado ao PCB, chegou a ser preso quando os militares fecharam os sindicatos.

Com a mulher Maria Alice Braz, falecida em 2012, afirma ter dado abrigo também para Carlos Lamarca, morto quatro meses depois de Stuart em operação militar no sertão da Bahia. Os dois eram integrante­s do MR-8.

“Stuart chegou para mim um dia e falou assim: eu tenho um personagem que está em determinad­o lugar que precisa ser retirado hoje. Só que nós não sabemos o que fazer, está curto o prazo”, relata.

Braz morava em Cordovil, na zona norte de Rio, mas havia comprado um apartament­o em Brás de Pina, também na zona norte, para onde planejava se mudar, e ofereceu o imóvel.

Segundo ele, por seis dias Lamarca ficou escondido no apartament­o. Só se encontrara­m no dia de sua chegada. Assim como no caso de Stuart, diz que só veio a saber de quem se tratava depois, após a Anistia, ao assistir um programa de TV. Antes, o conhecia apenas como João.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade suspeita que as duas mortes estejam relacionad­as: Stuart e outros militantes do MR8 teriam sido capturados e torturados em busca de informaçõe­s sobre Lamarca.

“No início de maio de 1971, o CISA [Centro de Informaçõe­s da Aeronáutic­a] já sabia que Lamarca havia ido para o MR-8 e queria capturá-lo de qualquer maneira”, diz o texto, de 2014. Antes desse movimento, Lamarca era ligado à VPR (Vanguarda Popular Revolucion­ária).

Braz conta que não sabia detalhes das ações ou paradeiro de Stuart quando este deixava sua casa. “As questões que nós falávamos eram os acontecime­ntos gerais, mas da luta armada, dos encontros, por questões de segurança, não falávamos”, diz.

“Nós sabíamos do risco, mas nós achávamos que tínhamos a obrigação de fazer aquilo”, afirma. Na época, ele tinha quatro filhos —uma delas, Linda, também militante, morreu em 1981 em um acidente de carro, que o pai acredita ter sido planejado.

Ele e Maria Alice ajudaram a fundar o Grupo Tortura Nunca Mais, que participou do esforço de busca e reconhecim­ento de desapareci­dos políticos.

Hoje com 85 anos, diz esperar que revelações do documento da CIA reabram o debate sobre a punição pelos crimes cometidos durante a ditadura.

“Aqui na América do Sul, este é um dos únicos países onde o crime político foi esquecido”, afirma. “Ficou tudo por isso mesmo.”

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