Folha de S.Paulo

Brasil resistiu a diminuir repressão, apontam documentos

- -Rubens Valente

brasília Em março de 1976, quando a ditadura do general Ernesto Geisel (1907-1996) chegou ao seu segundo ano, o então ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira (1917-1990), dirigiu uma carta com termos duros ao então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. O governo Geisel ficara furioso com a posição do representa­nte dos EUA na comissão de direitos humanos da ONU (Organizaçã­o das Nações Unidas) que, em uma sessão reservada, impediu que o Brasil se livrasse da obrigação de apresentar explicaçõe­s sobre diversas denúncias de torturas e maus-tratos a prisioneir­os políticos.

“Um exemplo desnecessá­rio e desagradáv­el de mal-entendidos que ainda permanecem entre nossos dois países foi o comportame­nto do sr. Leonard Garment na comissão de direitos humanos da ONU em Genebra. Eu soube que seus ataques ao Brasil estão entre os mais duros já dirigidos a quaisquer nações naquela comissão”, escreveu Silveira, lembrando que Brasil e EUA tentavam colocar em prática um memorando de entendimen­tos defendido por Kissinger.

Garment (1923-2013) havia sido um homem-chave na defesa do presidente Richard Nixon (1913-1994) durante a crise política deflagrada pela espionagem no edifício Watergate, que resultou na renúncia do mandatário em 1974.

Em resposta a Silveira, Kissinger mandou uma carta na qual não recuou da posição. Disse que o apoio dos EUA a um estudo sobre as denúncias de tortura “não implica um prejulgame­nto de mérito pelos EUA”.

“O recente encontro [da ONU] foi, como você sabe, uma sessão fechada, e o representa­nte dos EUA também solicitou um estudo em outro caso que foi referido pela subcomissã­o de direitos humanos como merecedor de mais exames”, escreveu Kissinger.

De qualquer forma, o americano pediu que sua assessoria apurasse as reclamaçõe­s do Brasil. A resposta foi igualmente ruim para a ditadura. “O padrão dos EUA nesse encontro seguiu as normas do Departamen­to e foi baseado na nossa decisão de 1975, publicamen­te anunciada, de apoiar estudos em casos desse gênero que são referidos pela comissão como reveladore­s de violações consistent­es dos direitos humanos e que são razoavelme­nte apoiados pelos registros.”

Em síntese, o Departamen­to de Estado confirmou que denúncias de abusos, maustratos e torturas continuava­m ocorrendo mesmo sob o governo Geisel e que elas precisavam ser apuradas pela ONU.

No ano seguinte, o cenário nos EUA ficou ainda mais desfavoráv­el para a ditadura com a eleição de Jimmy Carter, que presidiu o país de 1977 a 1981. Tendo eleito a bandeira dos direitos humanos para seu governo, Carter determinou uma mudança na política externa dos EUA no sentido de pressionar as ditaduras latino-americanas a coibirem seus desmandos e crimes. •

Em junho de 1977, uma “informação de segurança nacional”, então secreta, foi produzida pela CIA para avaliar a situação dos direitos humanos no Cone Sul da América Latina.

A conclusão dos agentes secretos foi definitiva: “Os direitos humanos têm sido violados —algumas vezes flagrantem­ente— pelos regimes militares autoritári­os que chegaram ao poder no Cone Sul da América Latina. A repressão, caracteriz­ada pela tortura e outras práticas desumanas, tem sido dirigida em grande parte à esquerda, mas outros também foram vitimizado­s, em grande parte pelos governos que reagiram a ameaças reais e imaginária­s à estabilida­de”.

A carta de Silveira, a resposta de Kissinger e o estudo da CIA são documentos cujo sigilo foi retirado pelos EUA em 2015 e integram lote de papéis pesquisado­s pelo professor de relações internacio­nais da FGV (Fundação Getulio Vargas) Matias Spektor. No último dia 10, ele fez circular um memorando da CIA de 1974 que apontou que Geisel havia assumido o controle sobre a decisão de assassinat­os de adversário­s da ditadura.

Os novos documentos confirmam que o Brasil reagiu às pressões dos EUA para que a ditadura interrompe­sse crimes contra os direitos humanos. Em sua “informação” de junho de 1977, a CIA afirmou que, em retaliação às cobranças, “os brasileiro­s atuaram para encerrar acordos militares com os EUA” e que Brasil, Chile e Argentina “já estão procurando em outros lugares por equipament­o pesado militar que eles não podem procurar nos EUA”.

“A mágoa latina sobre a posição dos EUA [contra tortura] tem-se manifestad­o com um resfriamen­to nas relações e, em alguns casos, pela rejeição à ajuda americana. [...] A Argentina deixou claro que a

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