Sem provocação
Júri do 71º Festival de Cannes, encerrado neste sábado (19), dá a Palma de Ouro a drama humanista ‘Assunto de Família’; político ‘BlacKkKlansman’ fica com segundo lugar BALANÇO
cannes No momento mais memorável da premiação do Festival de Cannes, na noite de sábado (19), a atriz italiana Asia Argento subiu ao palco porque queria “falar algumas palavras”.
Ela repetiu que foi estuprada pelo produtor Harvey Weinstein na edição de 1997, do evento e disse sem rodeios: “Cannes foi seu campo de caça. Mas ele nunca mais irá desgraçar a comunidade que o acolheu e o acobertou”.
Chamuscada pelo escândalo, a principal mostra de cinema do mundo preferiu em sua 71ª edição chutar para escanteio os cineastas provocadores e fazer escolhas menos ousadas na hora da premiação.
Sob o olhar atento dos movimentos feministas #MeToo e Time’s Up, o júri premiou duas das três diretoras mulheres no páreo (Nadine Labaki e Alice Rohrwacher) e escolheu como principal vencedor um drama de ressonância mais humanista que política.
Dono da Palma de Ouro deste ano, “Assunto de Família”, do japonês Hirokazu KoreEda, é um filme habitado por personagens despossuídos e trama emotiva.
Osamu (Lily Franky) é o patriarca empobrecido que divide o minúsculo casebre com o resto de seus parentes. A pensão de sua mãe idosa ajuda a pagar algumas contas, a primogênita ganha trocados como stripper, e o caçula aprendeu com o pai a arte de afanar itens do supermercado.
Numa noite gelada, Osamu topa com Juri (Miyu Sasaki), menina com o corpo recoberto de hematomas, aparentemente abandonada pelos pais. O homem a toma para si com a mesma facilidade com que furta biscoitos. “Só seria sequestro se houvesse um pedido de resgate” é a desculpa que usa para ficar com a garota.
A chegada da criança, contudo, põe à prova as bases da casa e joga luz sobre as mentiras que fundam a união entre os que ali vivem.
Essa é a sétima vez que Cannes exibe um filme do diretor que é o maior herdeiro de uma tradição de cineastas japoneses que exploram as dinâmicas familiares e que tem como maior expoente a figura de Yasujirô Ozu (1903-1963).
Capitaneados pela atriz australiana Cate Blanchett, os jurados desta edição deram o segundo lugar à politização.
“BlacKkKlansman”, do americano Spike Lee, levou o Grande Prêmio do Júri por sua história de um policial negro infiltrado na Ku Klux Klan. A obra atribui a Donald Trump parte da responsabilidade pelo ódio racial no país.
Já o terceiro lugar, o Prêmio do Júri, foi para “Caphernaüm”, da libanesa Nadine Labaki. A obra, sobre um menino pobre que processa os pais, é um drama construído para arrancar lágrimas do público.
Assim como “Assunto de Família”, o longa representa uma escolha bem menos arriscada do que a feita pela crítica, que votou em “Burning”, de Lee Chang-Dong, como o melhor filme da competição.
O título sul-coreano, de estrutura menos convencional, tem signos de masculinidade tóxica demais para um júri pós-Weinstein. Trata da espiral destrutiva de um jovem apaixonado por uma garota.
O festival, que em sua história já exibiu cenas de estupro de mais de dez minutos (“Irreversível”, 2002) e mutilações genitais (“Anticristo”, 2009), viu neste ano o público abandonar em massa a sessão do violento “The House that Jack Built”, tido como misógino.
Outrora incensado em Cannes, o diretor dinamarquês Lars von Trier voltou à mostra após um banimento de sete anos, mas encontrou um terreno que não pareceu mais tão suscetível à provocação.
Subversão mesmo veio com Jean-Luc Godard e seu “Le Livre d’Image”. A obra vira do avesso a narrativa tradicional de um filme ao compilar imagens e mensagens com conteúdo filosófico e político. A colagem empilha referências que vão dos blockbusters de Michael Bay a filmagens amadoras do Estado Islâmico.
Ausente de Cannes, o diretor falou com jornalistas via videoconferência, pelo celular de um de seus produtores —provocação de um octogenário cuja história se confunde com a do próprio festival. Há 50 anos, ele comandou um boicote a Cannes em apoio aos protestos estudantis de 1968, e é de um filme seu a imagem PALMA DE OURO ‘Assunto de Família’, de Hirokazu Kore-Eda
GRANDE PRÊMIO DO JÚRI ‘BlacKkKlansman’, de Spike Lee
PRÊMIO DO JÚRI ‘Capharnaüm’, de Nadine Labaki
DIREÇÃO
Pawel Pawlikowski, por ‘Cold War’
MELHOR ATRIZ
Samal Yeslyamova, por ‘Ayka’
MELHOR ATOR
Marcello Fonte, por ‘Dogman’
ROTEIRO
Alice Rohrwacher (‘Lazzaro Felice’) e Jafar Panahi (‘3 Faces’) do pôster desta edição.
Não à toa, o júri lhe deu uma Palma de Ouro especial, por sua “contribuição ao explorar os limites da linguagem”, nas palavras de Cate Blanchett.
Uma hora mais tarde, a equipe do filme disse que ainda nem havia lhe telefonado para falar do prêmio. “Não estou certa de que faça diferença para ele”, disse sua produtora. Fora dos holofotes de Palma de Ouro, Weinstein e Von Trier, outro assunto movimentava o mundo do cinema, mais precisamente de quem traba- lha com ele.
A maior causa de fuzuê no mercado de filmes em Cannes neste ano foi a chegada do Blockchain, sistema de codificação que permite o registro de transações digitais numa plataforma criptografada e descentralizada.
No cinema, o uso do Blockchain permitiria que investidores e até fãs cinéfilos soubessem exatamente em que e como o dinheiro que eles empenharam está sendo usado num filme. Isso porque o sistema pode ser acessado de qualquer computador.
Ao menos seis startups estacionaram na cidade durante o evento para divulgar os benefícios do Blockchain, que alardeiam como a maior revolução que vai acontecer no cinema em muitos anos.
Segundo essas empresas, o modelo de financiamento digitalmente controlado vai acabar com o monopólio dos estúdios na hora de produzir filmes.
Fundador de uma dessas empresas, a Gazecoin, o australiano Jonny Peters não foi nem um pouco modesto diante de quem estava disposto a ouvi-lo: “É o futuro do cinema. Não há volta”.
Participação feminina
Apenas 3 dos 21 filmes em competição eram de mulheres, mas 2 foram premiadas —Alice Rohrwacher e Nadine Labaki. A marcha das 82 mulheres no tapete vermelho se tornou a imagem desta edição.
Brasil nas paralelas
“Diamantino” levou o prêmio da Semana da Crítica; “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, o prêmio especial do júri na mostra Um Certo Olhar; e o curta “O Órfão”, a Queer Palm, voltada a produções LGBT.
Americanos no páreo
Após o boicote da Netflix e a ruína de Harvey Weinstein, os americanos tiveram na competição só“BlacKkKlansman” e “Under the Silver Lake”, reduzindo o potencial pop da disputa.
Longa odisseia
Depois de 25 anos, Terry Gilliam, enfim, concluiu “The Man Who Killed Don Quixote”. O resultado desapontou: a trama demora a engatar, os atores estão fora do tom, e as piadas não fizeram ninguém rir.