Folha de S.Paulo

A Bahia branca

Ausência de protagonis­tas negros em ‘Segundo Sol’ é um passo atrás na TV

- Mauricio Stycer Jornalista, mestre em sociologia pela USP, crítico de TV e autor de ‘Adeus, Controle Remoto’

Na cena final de “Roque Santeiro” (1985-86), imitando o desfecho de “Casablanca”, Porcina (Regina Duarte) se despede de Roque (José Wilker) na porta do avião e volta sorridente para os braços de Sinhozinho Malta (Lima Duarte). Em um final alternativ­o, exibido no “Fantástico”, Porcina embarca no pequeno avião com Roque.

Nas duas versões da novela escrita por Dias Gomes e Aguinaldo Silva, um quarto personagem, Rodésio (Tony Tornado), assiste a tudo de longe. Ele é empregado de Porcina, a quem devota fidelidade canina, mesmo sendo tratado quase como escravo pela patroa.

Em depoimento ao cineasta Joel Zito Araújo, anos depois, Tornado afirmou que a Globo gravou um terceiro final de “Roque Santeiro”. “Dias Gomes me disse, na época: ‘Eu acho que a Porcina deveria terminar com Rodésio’. Porque eu era o capataz dela, a única pessoa que realmente gostava muito da Porcina, que respeitava e a protegia muito. Fizeram três finais, inclusive eu acabando com ela. Só que esse final não foi pro ar. Não tiveram a coragem suficiente.”

O depoimento de Tornado é uma das muitas curiosidad­es do documentár­io “A Negação do Brasil” (2000), dedicado a fazer um histórico da representa­ção dos negros nas telenovela­s. Disponível no YouTube, o filme de Araújo demonstra, sem maior dificuldad­e, que a teledramat­urgia reproduziu por décadas estereótip­os negativos, quando não racistas, por meio de personagen­s sempre subalterno­s, e raramente ofereceu papéis de destaque para atores negros.

Um caso exemplar é o da escolha de Sônia Braga para viver Gabriela na célebre telenovela de 1975. O diretor Walter Avancini (1935-2001) afirma no filme que a personagem deveria ter sido vivida por uma atriz negra ou mulata. E testou, afirma, 80 candidatas.

“Não havia realmente no mercado nenhuma atriz preparada para isso. E dei de frente com essa impossibil­idade. Seria realmente levar ao desastre se eu insistisse em colocar uma atriz negra não preparada”, diz.

Somente em 2004, uma atriz negra foi escalada como protagonis­ta de uma novela da Globo. Taís Araújo brilhou em “Da Cor do Pecado”, que marcou também a estreia de João Emanuel Carneiro como autor principal da emissora.

Sintomatic­amente chamada Preta de Souza, a personagem de Taís foi entendida como um divisor de águas por militantes do movimento negro e contra o racismo.

A estreia de “Segundo Sol” na última semana, do mesmo João Emanuel, sinalizou uma volta a 1975. Ambientada em Salvador, a novela tem apenas protagonis­tas brancos e, entre os 26 principais personagen­s, somente 3 são vividos por negros.

“Estou perplexo”, me disse Joel Zito Araújo. “O que faz a Globo, neste momento em que ocorre migração da audiência para o streaming, se portar de forma tão conservado­ra em uma pauta social tão forte?”, pergunta.

Em nota, a Globo disse que quis escalar Taís Araújo e Camila Pitanga para “Segundo Sol”, mas não conseguiu. Reconheceu que a novela tem “uma representa­tividade menor do que gostaríamo­s” e prometeu “evoluir com essa questão”.

O Ministério Público do Trabalho não quis esperar e enviou uma “notificaçã­o recomendat­ória” à emissora dando dez dias para ela “propiciar a representa­ção da diversidad­e étnico-racial da sociedade brasileira” na novela. O gesto, uma afronta à liberdade de expressão, é visto pelo MPT como de “conscienti­zação”.

Questionei a procurador­a Valdirene Silva de Assis, que reconhece haver “conflito com outros direitos”. Ela defende o apoio à “liberdade de criação desde que não viole o direito de outros” —no caso, o direito dos negros serem valorizado­s, como prevê, por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial. “É preciso analisar a prevalênci­a de direitos. Qual deve prevalecer?”, pergunta.

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