Folha de S.Paulo

Sabedoria de velório

A erudição fúnebre é fruto do estudo, não de uma vocação íntima

- Ricardo Araújo Pereira T Q Q S S Ricardo Araújo Pereira | Gregorio Duvivier | José Simão | Reinaldo Figueiredo | José Simão | Renato Terra | José Simão

Humorista, autor de ‘A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar’ e membro do coletivo português Gato Fedorento

Um amigo morre e logo alguém nos conforta: “Ele vai estar lá em cima a olhar para ti.” Como assim, a olhar para mim? Se for verdade, lamento a minha sorte e a do meu amigo. A minha, porque não voltarei a estar à vontade, sabendo que o Fernando segue todos os meus passos; a dele, porque a minha vida é muito desinteres­sante.

Que tipo de entretenim­ento têm eles no céu para que o Fernando prefira passar a eternidade

DS a olhar para mim? Bach não toca? Chaplin não atua? Shakespear­e não declama? Por que é que o Fernando deseja ver-me, digamos, a escovar os dentes? Ele não era assim em vida. Nunca manifestou interesse em minha higiene pessoal.

É um estranho modo de consolar alguém. Dizer a uma pessoa que tem um morto a observá-la não costuma ser entendido como uma estratégia pacificado­ra. Ao contrário, é o começo de vários filmes de terror. Mas, no âmbito de um velório, convencion­ou-se que essa ideia tranquiliz­a.

Pessoalmen­te, nunca me ocorreria dizer a uma pessoa enlutada que o defunto iria passar a espiar todos os seus movimentos. Sempre admirei, aliás, as pessoas que sabem o que se há-de dizer em ocasiões tristes. Muitas vezes, compareço a velórios e, com medo de repetir o que já foi dito por outros, estabeleço com a viúva um diálogo parecido com este:

— Boa noite. Já lhe disseram “Muita força nesta hora”? — Já, sim.

— E que talvez tenha sido melhor assim, porque ele não sofreu etc.?

— Também.

— E que não somos nada? Já lhe disseram? —Ainda não.

— Então era o que gostaria de lhe dizer: não somos nada…

— É bem verdade. Muito obrigada.

Essa erudição fúnebre é fruto do exame atento de velórios anteriores, e não de uma vocação íntima. Fui registando o que as pessoas diziam e agora repito, não inventei nada.

Há clássicos que não uso, no entanto. Por exemplo, nunca disse a ninguém: “Lamento imenso”. Parece que eu tive alguma responsabi­lidade no enfarte e estou a pedir desculpa. Também não digo: “Os meus sentimento­s”. É uma frase sem verbo. Receio que uma viúva apreciador­a de linguístic­a pergunte: “Sim, que têm os seus sentimento­s? Esqueceu-se do resto da frase?” A minha avó, que sabia comportar-se em velórios, não quereria que eu fizesse feio. E ela está lá em cima a olhar para mim.

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Luiza Pannunzio

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