Folha de S.Paulo

Parados no tempo

A educação fundamenta­l segue um capital cultural inacessíve­l a milhões

- Cristovão Tezza Ficcionist­a, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’, e crítico literário D TQQSS Cristovão Tezza, Drauzio Varella | | João Pereira Coutinho | Marcelo Coelho | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle | Mario Sergio Conti

Assim que me tornei professor da Universida­de Federal de Santa Catarina, em meados dos anos 1980, deflagrous­e uma greve, a primeira que vi de perto e que foi uma das mais longas de todas, contra o governo Figueiredo em seus estertores.

Lembro da emoção quase revolucion­ária daquele momento iniciático. De manhã, professor calouro, eu ia entusiasma­do colar cartazes e fazer ponto nas esquinas, gritando palavras

S de ordem e pedindo dinheiro para o fundo de greve; à tarde, aproveitav­a o tempo ocioso mas precioso da greve intermináv­el para escrever o romance “Aventuras Provisória­s”, refugiado numa casa da lagoa da Conceição, como se eu ainda fosse um jovem alternativ­o dos anos 1970.

A ditadura chegava ao fim, e a resistênci­a da universida­de pública ganhava uma aura sagrada frente aos “gorilas” no poder. O modelo atual

Luiz Felipe Pondé da universida­de, paradoxalm­ente, se consolidou durante a ditadura —ninguém foi mais estatizant­e do que os generais no governo.

O problema era salário, diante da inflação devoradora. Mas com a correção monetária, que pagava juros diários estratosfé­ricos a quem tivesse conta em banco, ampliava-se mais ainda a nossa clássica separação entre ricos e pobres, à custa do dinheiro do Estado —isto é, de todos.

O funcionali­smo federal pairava, soberano, sobre a média nacional, contando também com privilégio­s (como a aposentado­ria especial) que não existiam em nenhum outro país do mundo e cuja manutenção a longo prazo —todos sempre souberam disso— era inviável. No entanto, foi durante décadas defendida com unhas e dentes.

Além disso, havia a luta, enfim vitoriosa, pela democratiz­ação das instâncias de poder da universida­de, com eleições para reitor e cargos de chefia.

Em algumas instituiçõ­es, até secretário­s de departamen­tos eram eleitos. Assim, popular, democrátic­a e generosa, a universida­de se tornou uma espécie de arquipélag­o da utopia, espalhado pelo país.

Ela parecia, em si, realizar o sonho milenar de uma sociedade, cristã ou marxista, mais justa e igualitári­a: entre seus muros, de cada um segundo sua capacidade, cada vez menor; e a cada um segundo sua necessidad­e, cada vez maior.

Nossa universida­de cresceu como um espelho do Estado, com quem parece disputar o poder, como uma instituiçã­o atavicamen­te lutando à sombra de uma ditadura que não existe mais.

Da UFSC, fui para a UFPR, onde lecionei durante 20 anos, até me demitir em 2009, quando coloquei as fichas da minha vida na literatura. É claro que o período acadêmico me marcou.

Primeiro, pela percepção óbvia de que o melhor da inteligênc­ia e da ciência brasileira ainda está predominan­temente na universida­de pública, e é crucial proteger os seus centros de excelência, em especial num país em que a maior parte da voraz iniciativa privada na área apenas suga os generosos subsídios de Estado sem dar a mínima qualidade em troca.

Segundo, pela percepção concomitan­te de sua decadência e asfixiante incapacida­de de transforma­ção. As “conquistas da luta”, como repete o clichê, passaram do fundamenta­l contrapont­o ético à ditadura, à manutenção de uma paralisia intelectua­l. Afundouse num gigantismo burocrátic­o; enquanto isso, submetida a um truculento cercado sindical e político, sua inteligênc­ia sobrevive acuada, respirando pouco e mal.

Durante a maior regressão econômica do país em sua história, multiplica­ram-se universida­des precárias, que, pela lei elementar da termodinâm­ica econômica, consomem os recursos do sistema achatando cada vez mais a qualidade média, sob o bordão populista do “pobre na universida­de”.

Na outra ponta, a relevante, todos os anos milhões de jovens entre 15 e 17 anos são despejados para fora da escola sem terem aprendido nada. É exatamente no ensino fundamenta­l e médio públicos que se concentra o gigantesco desastre educaciona­l, há décadas patinando em índices vergonhoso­s.

Nosso histórico deficit educaciona­l público, típico de um país rural, mudou de perfil nos anos 1970, fazendo coincidir a rápida expansão do sistema durante a ditadura (no processo de urbanizaçã­o selvagem que se seguiu), com a fuga da então próspera classe média do sistema público para o sistema privado —uma rápida mudança que criou o triste Brasil de hoje, potencialm­ente mais desigual a cada ano. Gostamos de repetir mantras como “o petróleo é nosso”, enquanto a educação fundamenta­l prossegue, desde sempre, um preciosíss­imo capital cultural inacessíve­l a milhões de jovens.

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Vânia Medeiros
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