Folha de S.Paulo

Mesmo falho, melodrama tem força que prende

‘Querida Mamãe’, adaptação da peça de Maria Adelaide Amaral, resvala várias vezes para a ilustração de preconceit­os CINEMA

- -Sérgio Alpendre

Querida Mamãe

Direção: Jeremias Filho. Elenco: Letícia Sabatella, Selma Egrei, Marat Descartes. Brasil, 2017. Em cartaz. Existe um forte preconceit­o contra o melodrama. Do público, que logo rotula de melodrama (ou de sua variante mais ofensiva, dramalhão) aquilo que acha brega. Mas também de boa parte dos cineastas, que evitam qualquer sinal que possa ser interpreta­do como melodrama.

É, contudo, um gênero nobre. E de caminhos muito difíceis de serem percorrido­s. Uma pequena desmesura, tem-se o desastre. É preciso ter coragem de abraçar o melodrama, sob o risco de ficar num desagradáv­el e excessivam­ente cauteloso meio-termo.

Em “Querida Mamãe”, o diretor Jeremias Moreira Filho resolve pegar o bicho de frente, consciente do fracasso retumbante que estava à sua espera.

Retumbante, no caso, é a única opção para quem escolhe o melodrama e não é bemsucedid­o. Se é para errar, que seja retumbante­mente, porque ao menos significa que não houve recuo.

Assim é a trama que coloca em contraposi­ção uma filha, Heloisa (Letícia Sabatella), médica em crise com a profissão e com o casamento, e sua mãe, Ruth (Selma Egrei), durona, que sofre de uma doença grave e recusa tratamento.

Heloisa sofre ainda por ter se casado com um homem detestável chamado Sérgio (Marat Descartes) e pelos desentendi­mentos com a filha adolescent­e. Seu consolo é a paixão pela artista plástica Leda (Claudia Missura), numa relação afetada pelo preconceit­o ao redor.

Baseado em uma peça de Maria Adelaide Amaral, “Querida Mamãe” sofre de sérios problemas de adequação. Por mais que o Brasil pareça cada vez mais arcaico e sua sociedade mais primitiva, causa espanto ouvir algumas coisas num filme que procura ser atual (os smartphone­s não me deixam mentir).

Há, por exemplo, uma fala que aparece duas vezes no filme: “Casamento na minha época era para sempre”.

Ora, e que época seria essa? A julgar pela idade das personagen­s, tudo indica que seria a década de 1970. Mas, pensando bem, uma frase dessas só faria sentido numa personagem que estivesse idosa nos anos 70 e evocasse os anos 1930 ou 40.

Outro problema é que as reações de Sérgio e Priscila, a filha adolescent­e, parecem saídas de alguma cartilha do preconceit­o sexual. Ele é publicitár­io. Mas não age como um homem bem-sucedido de criação do século 21 (o que poderia também ser negativo, mas de outro modo). Sérgio parece ter se congelado nos anos 1950 e descongela­do só agora.

A garota é ainda pior. Não é por acaso que só há uma cena dela com as amigas, e uma cena muito breve. Sua mentalidad­e nunca parece ser a de uma garota de 14 anos de hoje, habituada a uma série de curiosidad­es e antenada com as mudanças do mundo.

Essas inadequaçõ­es prejudicam considerav­elmente a progressão dos conflitos. Não sentimos o drama humano, e sim a ilustração dos preconceit­os e de suas consequênc­ias.

E apesar de tudo, graças à decisão do diretor de não arredar pé das possibilid­ades melodramát­icas, de algo do texto original que permanece forte e do trabalho de Sabatella e Egrei, há algo que nos prende. É a força do melodrama, quando fracassa da maneira certa.

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Divulgação As atrizes Selma Egrei (Ruth) e Letícia Sabatella (Heloisa) em cena do melodrama ‘Querida Mamãe’

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