Folha de S.Paulo

O espírito de 68

A revolução não afetava a estrutura da sociedade, mas as mentalidad­es e atitudes

- Otavio Frias Filho Diretor de Redação da Folha, é autor de ‘Queda Livre’ (Companhia das Letras) e ‘Cinco Peças e Uma Farsa’ (Cosac Naify) STQQSS Otavio Frias Filho, Angela Alonso, Bernardo Carvalho

A melhor imagem para ilustrar o impacto que as revoltas de 1968 exerceram na sociedade ocidental talvez seja a da bomba de nêutrons, que vaporiza materiais leves (como tecidos orgânicos) enquanto deixa as estruturas intactas.

Quem lê os manifestos da mais famosa daquelas insurreiçõ­es urbanas, a de Paris, fica surpreso com a convicção de seus redatores de que faziam uma revolução social, como a bolcheviqu­e, da qual tomavam emprestado o jargão. Logo se revelaria que, além dos estudantes de humanidade­s, apenas uma franja radicaliza­da dos sindicatos operários aderia a objetivo tão drástico.

O movimento foi efêmero e

D inócuo, o capitalism­o seguia sua marcha triunfal. A revolução de que maio de 1968 se tornou o signo máximo não afetava, porém, a estrutura da sociedade, mas as mentalidad­es e atitudes, que se tornavam mais livres e fluidas do que nunca antes. Nem tampouco se restringiu a um mês, estendendo-se por grande parte dos anos 1960 e 1970.

Mais do que o maio passageiro, o que imantou essa fecunda corrente de opinião, conhecida como contracult­ura, foi a bem-sucedida campanha pelo fim da intervençã­o norte-americana no Vietnã, que funcionava como abreviatur­a algébrica de várias causas que empolgavam o setor politizado

Jorge Coli, da juventude.

Nesse sentido amplo, o espírito de 68 era moldado por pelo menos quatro vertentes: contra o capitalism­o, contra a autoridade, pela paz mundial e pela libertação sexual. Como todo movimento de cunho romântico, comportava uma idealizaçã­o da natureza e da vida em comunidade­s idílicas.

Seus êxitos foram bastante díspares em cada aspecto. A vida em comunidade praticada pelos hippies logo revelou de modo bem palpável como o inferno pode ser os outros e ficou reduzida a uma excentrici­dade, enquanto a idealizaçã­o da natureza se encontra, ao contrário, em seu apogeu.

Mais inequívoca­s foram as vitórias do pacifismo e da liberdade sexual.

É a recusa crescente de jovens do mundo todo a se deixar matar na carnificin­a quase sempre inútil das guerras que explica que elas sejam mais raras, mais cirúrgicas e mais dependente­s de máquinas. E, nestes 50 anos, as sociedades ocidentais vivem o período de mais ampla aceitação da autonomia e da diversidad­e sexuais de toda a história.

Mais fascinante ainda foi a rapidez com que desabou aquilo que Max Weber chamava de autoridade tradiciona­l, lastreada no respeito aos costumes e às antigas gerações. Todas as formas de autoridade foram postas sob suspeita, exceto as chancelada­s pela legitimida­de técnica do “especialis­ta”. Surgiu uma informalid­ade inédita no trato interpesso­al.

Nos anos 60, aliás, a humanidade se desuniform­izou. Nas roupas, nos cabelos, no design, na própria arquitetur­a irrompeu uma imensa variedade de opções; desde então a estética de cada década é um pastiche das anteriores.

Esse traço sempre foi utilizado para argumentar que o espírito de 68, sob as aparências de solapar o capitalism­o, na verdade preparava o terreno para a multiplica­ção de oportunida­des de consumo em escala antes impensável.

O raciocínio é plausível, mas o principal golpe sofrido pelas concepções alternativ­as ao capitalism­o foi a dissolução quase espontânea dos experiment­os coletivist­as na China e na Rússia nos 20 anos seguintes, numa demonstraç­ão vigorosa de como funcionam mal as fórmulas que o socialismo prescreve para a economia.

Talvez o espírito de 68 tenha trazido, no entanto, uma contribuiç­ão menos evidente àquilo que o sociólogo canadense C. B. Macpherson, escrevendo em plena contracult­ura, qualificou de individual­ismo possessivo. Apesar das comunidade­s hippies, a mentalidad­e de 68 valorizava sobretudo a liberdade pessoal, a busca de caminhos, como psicanális­e, meditação e drogas, que permitisse­m uma reconexão do eu consigo mesmo.

É a raiz da atitude predominan­te em nossos dias, que poderíamos chamar de hedonismo calculista. Hedonismo porque preza a maximizaçã­o do prazer individual acima de tudo; calculista porque se empenha em estender o usufruto do prazer pela mais longa existência possível.

Nação, classe e etnia são fantasias poderosas, capazes de mobilizar multidões e mudar a história, mas são fantasias: o que existe afinal são indivíduos concretos, em comunicaçã­o precária uns com os outros, a viver a única vida de que jamais disporão.

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