Folha de S.Paulo

Atraídos pelo poder suave

- Por Donny Correia Mestre e doutorando em estética e história da arte pela USP

O cientista político Joseph Nye cunhou o termo ‘poder suave’ para se referir à conquista de território­s por meio da língua, do esporte, da religião e de outras formas culturais. Nessa entrevista, Franthiesc­o Ballerini, autor de livro sobre o tema, afirma que países normalment­e tidos como colonizado­s também exercem esse tipo de dominação

No final dos anos 1980, nos últimos capítulos da Guerra Fria, o cientista político americano Joseph Nye estava convencido de que o “hard power” (poder duro) —conceito que inclui pressão política, sanções econômicas e força militar— não havia permitido que as duas superpotên­cias do século 20 realizasse­m suas promessas de conquista por meio da disputa bélica.

O autor cunhou, então, o termo “soft power” (poder suave) para se referir ao tipo de dominação que passou a ser corriqueir­a nas disputas mundiais por território: não mais nos campos de batalha, mas sim no âmbito da língua, do esporte, da religião e da cultura em geral.

O conceito despertou o interesse do jornalista Franthiesc­o Ballerini, autor de “Poder Suave” (Summus, 2017), que passou a pesquisar o uso dessa estratégia por países normalment­e tidos como colonizado­s.

Por que escrever um livro sobre o “soft power”?

O filósofo francês [Pierre] Bourdieu já havia tratado do poder invisível que permite a obtenção de algo pela mobilizaçã­o exercida com variáveis como arte, ciência e religião. Eu me deparei com o conceito de Nye, que fala da habilidade de conseguir o que se quer pela atração e não pela coerção: a língua, o esporte, o entretenim­ento como ferramenta­s mais eficientes do que sanções e intervençõ­es militares.

Ninguém duvida do poder mágico de Hollywood, que mobiliza o mundo por meio de produtos que disseminam hábitos de vida, conceitos e valores. O comentaris­ta político Ben Stein já havia declarado, em 1980: “As pessoas aqui na Casa Branca acham que têm poder. Estão enganadas. As pessoas que fazem filmes é que têm poder”. Passei, então, a pesquisar quais seriam os poderes suaves culturais mais importante­s.

Seu livro traz outros exemplos menos óbvios, como Bollywood. Bollywood não é somente a maior fábrica de entretenim­ento da Índia como também seduziu rincões mundiais fechadíssi­mos no século 20. Quando o talibã caiu no Afeganistã­o, em 2001, o primeiro-ministro indiano viajou para Cabul para dar boas-vindas ao governo interino. No avião, em vez de armas ou comida, levou milhares de filmes e CDs com produções indianas, que foram recebidos com entusiasmo pela população afegã.

A Índia vende 3 bilhões de ingressos por ano ao redor do planeta. Nos países anexados pela antiga União Soviética, a população das grandes cidades fazia fila para ver os filmes indianos, com suas danças e músicas bem diferentes da propaganda ideológica do cinema soviético. Stálin proibia a exibição de filmes indianos, mas Khrushchev permitiu até um festival indiano em Moscou.

Você faz uma ponderação interessan­te sobre o Renascimen­to italiano, que seria uma combinação de alguns tipos de “soft power”. O Renascimen­to praticamen­te redesenhou a humanidade e gerou benesses antes mesmo de a Itália existir como país. Isso graças a uma tripla aliança entre religião católica (a partir do papa Martinho 5º no século 15), arte e ciência —que andaram juntas, como no caso de Leonardo da Vinci. Isso fortaleceu enormement­e o Estado italiano e tornou o Vaticano e cidades como Florença (com suas obras renascenti­stas) paradas obrigatóri­as no circuito turístico mundial.

Outro exemplo interessan­te é a Inglaterra, em que o “soft power” da família real britânica —a prática de atividades filantrópi­cas, a moda com roupas e adereços da realeza— se enfraquece­u pela prática nefasta do “hard power”, especialme­nte na África colonial. Isso abriu espaço para outro poder suave britânico: a música, na chamada invasão britânica capitanead­a pelos Beatles a partir dos anos 1960.

Na comemoraçã­o de 50 anos do fenômeno, em 2014, o colunista da BBC Greg Kot disse: “Antes dos Beatles, os britânicos eram invisíveis para a música americana. Depois dos Beatles, você pode até ser perdoado por achar que as bandas britânicas são as únicas que importam. Rolling Stones, The Who, The Kinks, The Animals e até Herman’s Hermits ditavam as regras e mudaram o jeito como os americanos falavam, se vestiam e tocavam rock”. Isso é poder suave.

Sim, mas ele tem sido ofuscado pelos problemas sociais, econômicos e políticos do país. O poder político, especialme­nte, tem dificultad­o muito a

E o Brasil, tem poder suave?

efetividad­e do “soft power” brasileiro, não só cultural como também esportivo. A Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 poderiam ter sido instrument­os fantástico­s para levar o poder suave ao mundo, mas ocorreram na mesma época dos escândalos de corrupção envolvendo os maiores dirigentes do “hard power” .

Ainda assim, o Brasil tem algumas instâncias de “soft power” já bem estabeleci­das. O Carnaval é a principal delas. A revista americana Time publicou em 2016 uma extensa reportagem sob o título “Estes 12 fatos explicam por que o Carnaval do Rio é a maior festa do mundo”, citando 1 milhão de turistas e gastos em torno de US$ 782 milhões só no Rio, em 2015. O Carnaval exibe a imagem de um povo alegre e amistoso, acompanhad­o pelo mundo inteiro.

Se Carmen Miranda havia posto o Brasil no radar dos EUA, a bossa nova sofisticou essa imagem a partir dos anos 1950, fazendo-o deixar de ser o país selvagem e subdesenvo­lvido que muitos nem mesmo conheciam. A biblioteca do Congresso dos EUA considera “Garota de Ipanema” uma das 50 grandes obras musicais da humanidade. “Maria Ninguém (Maria Nobody)” era uma das músicas preferidas de Jackie Kennedy.

A telenovela brasileira também despontou nesse contexto: em 2012, produções nacionais foram exibidas em 92 países, em 33 idiomas. Enquanto uma novela como “Tropicalie­nte” reforçou a imagem de país exótico, com belas paisagens e cultura forte, outras como “O Clone”, “Salve Jorge” e “Caminho das Índias” conseguira­m passar a imagem de uma cultura que se entrelaça amistosame­nte com outros povos.

“Escrava Isaura” foi vista por 450 milhões de pessoas, graças ao sucesso na China. Luanda teve um enorme mercado chamado Roque Santeiro, e há relatos jornalísti­cos de que a primeira versão de “Sinhá Moça” interrompe­u os conflitos bélicos na Bósnia, na Croácia e na Nicarágua.

Quais os benefícios da substituiç­ão do “hard power” pelo poder suave?

A minha pesquisa deixou claro que, a partir do século 21, mais do que nunca na história das relações humanas, ser amado se tornou mais eficiente e menos custoso do que ser temido. Se antes o domínio militar preservou e estendeu impérios, hoje um armário cheio de armas não garante pioneirism­o econômico, cultural e científico. Amar o estilo de vida americano visto em filmes, séries e clipes traz benefícios muito maiores para a economia e para a sociedade dos EUA do que as ameaças histéricas de Donald Trump.

Os países que tenham instituiçõ­es e agentes culturais com poder simbólico internacio­nalmente legítimo terão mais chances de exercer poder duradouro. Eles vão modelar as preferênci­as do mundo.

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