Folha de S.Paulo

Procurando Macron

- Por Mathias Alencastro Doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford e pesquisado­r do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to) Ilustração Jan Limpens Ilustrador e quadrinist­a

Autor analisa o recém-completado primeiro ano de mandato presidenci­al de Emmanuel Macron na França e discute a possibilid­ade de a experiênci­a ser replicada no Brasil

Emmanuel Macron chegou à Presidênci­a da França com tanta força que, pouco depois de seu êxito eleitoral, muitos já o admiravam como modelo de uma nova tendência: um candidato jovem (ele fez 40 anos em dezembro), neófito nas urnas, líder de um novo movimento político (o En Marche!, em marcha).

Ao contrário de um mito populariza­do no Brasil, Macron era tudo menos um outsider quando lançou a sua candidatur­a. Acumulava uma experiênci­a de cinco anos na administra­ção pública francesa, na qual chegou a ministro, e de quase uma década na política partidária, como membro do Partido Socialista.

Uma vez no comando do país, destacou-se por sua visão sobre o Estado e sobre a relação entre o Executivo e o Congresso. Preferindo se apresentar como “nem de direita nem de esquerda” do que de centro, ele redefiniu as regras do jogo partidário para impor a sua agenda de reformas.

Um ano depois de ter conquistad­o dois terços dos votos no segundo turno contra a líder de extrema direita Marine Le Pen, Macron continua sendo referência para diversos políticos das democracia­s liberais, incluindo o Brasil.

Por aqui, a emergência de um “Macron brasileiro” passou a ser vista como forma de atender um eleitorado cada vez mais segmentado e, ao mesmo tempo, atenuar as consequênc­ias da obsolescên­cia programada das agremiaçõe­s sociaisdem­ocratas.

Alguns políticos até tentaram forçar uma amizade com Macron. João Doria (PSDB), por exemplo, deslocou-se a Paris em setembro com o propósito de obter a bênção do presidente francês. Arrancou dois dedos de conversa numa sala repleta de outras pessoas, mas não convenceu.

Uma fonte diplomátic­a descreveu o tucano para o jornal Le Monde como um “[Silvio] Berlusconi brasileiro, sem o bunga bunga”, numa alu- são às festas lúbricas do populista italiano. Com efeito, Doria, sectário e inconsiste­nte, revelou-se o anti-Macron por excelência.

Sua intuição, porém, estava certa: os acontecime­ntos recentes na França podem servir de roteiro para a tão desejada renovação política em outros países ocidentais.

Assim como ocorreu depois do sucesso eleitoral de Barack Obama nos Estados Unidos, inúmeros autodeclar­ados marqueteir­os de Macron bateram à porta dos políticos brasileiro­s com a promessa de compartilh­ar os segredos da campanha vitoriosa. Coordenado­r da base de dados utilizada para recrutar militantes pelo En Marche!, Guillaume Liegey passou por São Paulo em plena febre Luciano Huck e disse estar convencido de que o modelo poderia ser importado.

“Emmanuel Macron: les Coulisses d’une Victoire” (Emmanuel Macron: os bastidores de uma vitória, 2017), documentár­io de Yann L’Henoret, mostra os limites dessa promessa. A despeito do jargão empreended­or que permeava os discursos da campanha, exaltando a iniciativa individual e a abordagem “bottom-up” (de baixo para cima), todas as decisões passavam pelas mãos do candidato.

Numa das cenas, ele é visto redigindo um comunicado de imprensa sob o olhar bovino dos assessores mais próximos. O En Marche! (que depois das eleições foi rebatizado La Republique en Marche, A República em Marcha) é uma máquina desenhada pelo líder para servir a seu projeto, dificilmen­te replicável por um aventureir­o.

O recém-completado primeiro ano de mandato confirmou a impressão, forjada na campanha, de que Macron é um político assumidame­nte elitista. No livro “Un Personnage de Roman” (um personagem de romance, 2017), de Phillippe Besson, o presidente francês se refere a Napoleão para justificar sua preferênci­a por se cercar de conselheir­os superdiplo­mados: “Os marechais do império [que acompanhav­am Napoleão] eram jovens e não eram homens do povo, eles tinham feito a escola da guerra”.

Referência­s à Revolução Francesa de 1789 e ao Primeiro Império Francês fundado por Napoleão em 1804 voltaram a ser recorrente­s com Macron, que escolheu o Palácio do Louvre para fazer o discurso de vitória, recebeu o russo Vladimir Putin no Palácio de Versalhes e convidou o americano Donald Trump para assistir ao desfile militar da festa nacional de 14 de julho. Esses eventos pomposos serviam para introduzir a primeira das três dimensões constituti­vas do macronismo: a restauraçã­o da ordem republican­a.

Esse aspecto se reflete no exercício de seu poder, que Macron define como jupiterian­o —distante, sóbrio e altivo. Todo o contrário da autointitu­lada presidênci­a normal de François Hollande (2012-2017), vista como um período de acabrunham­ento da autoridade do Executivo, e da sórdida hiperpresi­dência de Nicolas Sarkozy (2007-2012), marcada por golpes sujos como os descritos no excelente “Sarko m’a tuer” (Sarko me matou, 2011), de Gérard Davet e Fabrice Lhomme.

Na sua busca por uma nova dinâmica, Macron formou uma equipe ministeria­l de estrelas ascendente­s da política regional, líderes do setor privado e notáveis da sociedade civil, entre os quais se destaca o ativista ambiental Nicolas Hulot, eterno presidenci­ável reconverti­do em consciênci­a ecológica do atual governo.

Fiéis à regra de tolerância zero a vazamentos e declaraçõe­s falastrona­s, os ministros se limitam a comunicado­s técnicos sobre metas e objetivos adornados de elogios ao soberano. Essa cortina de fumo desespera os jornalista­s, que, incapazes de especular sobre as intrigas palacianas, recorrem às influência­s intelectua­is do presidente.

Paul Ricoeur (1913–2005) tem despertado grande interesse. Macron assessorou o filósofo e redigiu estudos sobre seu trabalho, que tinha o intento declarado de buscar uma terceira via humanista entre o capitalism­o liberal e o marxismo.

O conde de Saint-Simon (17601825) é outra referência notável. Teórico político e econômico, defendia a industrial­ização, aplaudia os produtores e abominava os rentistas. Para Pierre Musso, autor de “Saint-Simon et le Saint-Simonisme” (SaintSimon e o saint-simonismo, 1999), a França está redescobri­ndo o pensamento industrial­ista sob o impulso de Macron.

Saint-Simon é essencial para entender a segunda dimensão constituti­va do macronismo: o papel da administra­ção pública na organizaçã­o do setor produtivo. O presidente —liberal consciente de viver num mundo cada vez mais iliberal, onde o internacio­nalismo perde espaço para o nacionalis­mo— vem reforçando o caráter estratégic­o do Estado. Nacionaliz­ação e privatizaç­ão, por exemplo, passaram a ser dois mecanismos de radicalida­de equivalent­e.

Quando o estaleiro naval STX estava ameaçado de falir e ser adquirido por uma empresa chinesa, o governo Macron não hesitou em proceder a uma nacionaliz­ação temporária. A virtude orçamentár­ia, por sua vez, é apresentad­a como necessidad­e para aumentar a despesa pública, componente essencial da ação estatal. A melhoria da competitiv­idade do setor empresaria­l e empreended­or, um dos fetiches do presidente, passa por um plano de investimen­to público em ciência e tecnologia estimado em 60 bilhões de euros.

A importânci­a conferida ao Estado, no seu sentido simbólico, estético e instrument­al, revela o enorme fosso que separa o atual governo francês do projeto de Estado mínimo defendido por alguns dos candidatos apresentad­os como “Macrons brasileiro­s”. Dificilmen­te João Amoêdo (Novo) e Henrique Meirelles (MDB) se identifica­riam com o slogan de campanha de Macron: “libertar e proteger”.

Joaquim Barbosa (PSB), que chegou a ser pensado como candidato do novo centro brasileiro, é particular­mente atento a questões francesas, devido a sua formação política e intelectua­l. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal deve se reconhecer em Macron. Ele também é um produto do ensino público francês (obteve três diplomas de pós-graduação na Universida­de Panthéon-Assas - Paris 2), demonstra pouca estima pelos políticos profission­ais, ignora cordialmen­te os jornalista­s e parece indiferent­e à suposta falta de clareza de suas posições ideológica­s.

Talvez ainda mais importante para compreende­r sua decisão de não disputar o Planalto, Barbosa partilha com o líder do En Marche! o mesmo diagnóstic­o sobre a política partidária. Logo após a vitória de Macron, o ministro aposentado ressaltou o desejo da velha nação francesa de inovar e destacou a revanche do francês eleito sobre os “velhos e carco-

FHC tanto se empenhou em apadrinhar uma candidatur­a de ruptura que chegou a traçar um paralelo entre Macron, intérprete do filósofo Paul Ricoeur, e Huck, idealizado­r da Tiazinha

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