Procurando Macron
Autor analisa o recém-completado primeiro ano de mandato presidencial de Emmanuel Macron na França e discute a possibilidade de a experiência ser replicada no Brasil
Emmanuel Macron chegou à Presidência da França com tanta força que, pouco depois de seu êxito eleitoral, muitos já o admiravam como modelo de uma nova tendência: um candidato jovem (ele fez 40 anos em dezembro), neófito nas urnas, líder de um novo movimento político (o En Marche!, em marcha).
Ao contrário de um mito popularizado no Brasil, Macron era tudo menos um outsider quando lançou a sua candidatura. Acumulava uma experiência de cinco anos na administração pública francesa, na qual chegou a ministro, e de quase uma década na política partidária, como membro do Partido Socialista.
Uma vez no comando do país, destacou-se por sua visão sobre o Estado e sobre a relação entre o Executivo e o Congresso. Preferindo se apresentar como “nem de direita nem de esquerda” do que de centro, ele redefiniu as regras do jogo partidário para impor a sua agenda de reformas.
Um ano depois de ter conquistado dois terços dos votos no segundo turno contra a líder de extrema direita Marine Le Pen, Macron continua sendo referência para diversos políticos das democracias liberais, incluindo o Brasil.
Por aqui, a emergência de um “Macron brasileiro” passou a ser vista como forma de atender um eleitorado cada vez mais segmentado e, ao mesmo tempo, atenuar as consequências da obsolescência programada das agremiações sociaisdemocratas.
Alguns políticos até tentaram forçar uma amizade com Macron. João Doria (PSDB), por exemplo, deslocou-se a Paris em setembro com o propósito de obter a bênção do presidente francês. Arrancou dois dedos de conversa numa sala repleta de outras pessoas, mas não convenceu.
Uma fonte diplomática descreveu o tucano para o jornal Le Monde como um “[Silvio] Berlusconi brasileiro, sem o bunga bunga”, numa alu- são às festas lúbricas do populista italiano. Com efeito, Doria, sectário e inconsistente, revelou-se o anti-Macron por excelência.
Sua intuição, porém, estava certa: os acontecimentos recentes na França podem servir de roteiro para a tão desejada renovação política em outros países ocidentais.
Assim como ocorreu depois do sucesso eleitoral de Barack Obama nos Estados Unidos, inúmeros autodeclarados marqueteiros de Macron bateram à porta dos políticos brasileiros com a promessa de compartilhar os segredos da campanha vitoriosa. Coordenador da base de dados utilizada para recrutar militantes pelo En Marche!, Guillaume Liegey passou por São Paulo em plena febre Luciano Huck e disse estar convencido de que o modelo poderia ser importado.
“Emmanuel Macron: les Coulisses d’une Victoire” (Emmanuel Macron: os bastidores de uma vitória, 2017), documentário de Yann L’Henoret, mostra os limites dessa promessa. A despeito do jargão empreendedor que permeava os discursos da campanha, exaltando a iniciativa individual e a abordagem “bottom-up” (de baixo para cima), todas as decisões passavam pelas mãos do candidato.
Numa das cenas, ele é visto redigindo um comunicado de imprensa sob o olhar bovino dos assessores mais próximos. O En Marche! (que depois das eleições foi rebatizado La Republique en Marche, A República em Marcha) é uma máquina desenhada pelo líder para servir a seu projeto, dificilmente replicável por um aventureiro.
O recém-completado primeiro ano de mandato confirmou a impressão, forjada na campanha, de que Macron é um político assumidamente elitista. No livro “Un Personnage de Roman” (um personagem de romance, 2017), de Phillippe Besson, o presidente francês se refere a Napoleão para justificar sua preferência por se cercar de conselheiros superdiplomados: “Os marechais do império [que acompanhavam Napoleão] eram jovens e não eram homens do povo, eles tinham feito a escola da guerra”.
Referências à Revolução Francesa de 1789 e ao Primeiro Império Francês fundado por Napoleão em 1804 voltaram a ser recorrentes com Macron, que escolheu o Palácio do Louvre para fazer o discurso de vitória, recebeu o russo Vladimir Putin no Palácio de Versalhes e convidou o americano Donald Trump para assistir ao desfile militar da festa nacional de 14 de julho. Esses eventos pomposos serviam para introduzir a primeira das três dimensões constitutivas do macronismo: a restauração da ordem republicana.
Esse aspecto se reflete no exercício de seu poder, que Macron define como jupiteriano —distante, sóbrio e altivo. Todo o contrário da autointitulada presidência normal de François Hollande (2012-2017), vista como um período de acabrunhamento da autoridade do Executivo, e da sórdida hiperpresidência de Nicolas Sarkozy (2007-2012), marcada por golpes sujos como os descritos no excelente “Sarko m’a tuer” (Sarko me matou, 2011), de Gérard Davet e Fabrice Lhomme.
Na sua busca por uma nova dinâmica, Macron formou uma equipe ministerial de estrelas ascendentes da política regional, líderes do setor privado e notáveis da sociedade civil, entre os quais se destaca o ativista ambiental Nicolas Hulot, eterno presidenciável reconvertido em consciência ecológica do atual governo.
Fiéis à regra de tolerância zero a vazamentos e declarações falastronas, os ministros se limitam a comunicados técnicos sobre metas e objetivos adornados de elogios ao soberano. Essa cortina de fumo desespera os jornalistas, que, incapazes de especular sobre as intrigas palacianas, recorrem às influências intelectuais do presidente.
Paul Ricoeur (1913–2005) tem despertado grande interesse. Macron assessorou o filósofo e redigiu estudos sobre seu trabalho, que tinha o intento declarado de buscar uma terceira via humanista entre o capitalismo liberal e o marxismo.
O conde de Saint-Simon (17601825) é outra referência notável. Teórico político e econômico, defendia a industrialização, aplaudia os produtores e abominava os rentistas. Para Pierre Musso, autor de “Saint-Simon et le Saint-Simonisme” (SaintSimon e o saint-simonismo, 1999), a França está redescobrindo o pensamento industrialista sob o impulso de Macron.
Saint-Simon é essencial para entender a segunda dimensão constitutiva do macronismo: o papel da administração pública na organização do setor produtivo. O presidente —liberal consciente de viver num mundo cada vez mais iliberal, onde o internacionalismo perde espaço para o nacionalismo— vem reforçando o caráter estratégico do Estado. Nacionalização e privatização, por exemplo, passaram a ser dois mecanismos de radicalidade equivalente.
Quando o estaleiro naval STX estava ameaçado de falir e ser adquirido por uma empresa chinesa, o governo Macron não hesitou em proceder a uma nacionalização temporária. A virtude orçamentária, por sua vez, é apresentada como necessidade para aumentar a despesa pública, componente essencial da ação estatal. A melhoria da competitividade do setor empresarial e empreendedor, um dos fetiches do presidente, passa por um plano de investimento público em ciência e tecnologia estimado em 60 bilhões de euros.
A importância conferida ao Estado, no seu sentido simbólico, estético e instrumental, revela o enorme fosso que separa o atual governo francês do projeto de Estado mínimo defendido por alguns dos candidatos apresentados como “Macrons brasileiros”. Dificilmente João Amoêdo (Novo) e Henrique Meirelles (MDB) se identificariam com o slogan de campanha de Macron: “libertar e proteger”.
Joaquim Barbosa (PSB), que chegou a ser pensado como candidato do novo centro brasileiro, é particularmente atento a questões francesas, devido a sua formação política e intelectual. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal deve se reconhecer em Macron. Ele também é um produto do ensino público francês (obteve três diplomas de pós-graduação na Universidade Panthéon-Assas - Paris 2), demonstra pouca estima pelos políticos profissionais, ignora cordialmente os jornalistas e parece indiferente à suposta falta de clareza de suas posições ideológicas.
Talvez ainda mais importante para compreender sua decisão de não disputar o Planalto, Barbosa partilha com o líder do En Marche! o mesmo diagnóstico sobre a política partidária. Logo após a vitória de Macron, o ministro aposentado ressaltou o desejo da velha nação francesa de inovar e destacou a revanche do francês eleito sobre os “velhos e carco-
FHC tanto se empenhou em apadrinhar uma candidatura de ruptura que chegou a traçar um paralelo entre Macron, intérprete do filósofo Paul Ricoeur, e Huck, idealizador da Tiazinha