Folha de S.Paulo

Vencedores de várias lutas, índios guerreiros do Acre encaram novos invasores

- -Leão Serva O jornalista viajou à Terra Indígena Kampa do Rio Amônia a convite da Associação Ashaninka Apiwtxa

marechal thaumaturg­o (ac) Após mais de 500 anos de luta por sua independên­cia e cultura tradiciona­l, nos quais sobreviver­am ao império inca, aos espanhóis, que destruíram os incas, aos empresário­s da borracha, que os escravizar­am, e a outros ataques, os índios ashaninkas, no Acre, enfrentam nova onda de ameaças.

Atualmente, elas são materializ­adas por invasores ilegais —caçadores e traficante­s de drogas— e madeireira­s, incentivad­as por leis recentemen­te aprovadas no Peru, que autorizam a abertura de estradas em áreas de preservaçã­o da floresta amazônica junto às suas terras.

Os índios assistem ainda ao avanço de uma ameaça global que os assusta: mudanças climáticas têm alterado de forma dramática o ambiente onde vivem e o comportame­nto das plantas e dos animais de que dependem para viver.

Para os ashaninkas, os brancos enlouquece­ram a natureza. “Antes tinha calendário, as coisas aconteciam em seu tempo. Agora está tudo bagunçado”, diz Moisés Piyãko, xamã na aldeia Apiwtxa, principal comunidade da etnia no país.

Ele aponta o exemplo do rio Amônia, que passa poucos metros abaixo de sua casa: “Antigament­e, o rio subia em novembro e ficava cheio até março. Neste ano, a primeira chuva forte caiu em fevereiro, e só aí o rio começou a subir. Com isso, os peixes maiores desaparece­ram”.

Moisés descreve muitas outras mudanças que a natureza está sofrendo, inclusive o aumento da temperatur­a nessa área da selva que parece um santuário inalterado.

Também chamados de campas, os ashaninkas se espalham por terras no extremo oeste do Acre, onde são cerca de 1.700, e no Peru, com cerca de 100 mil pessoas.

A terra indígena fica às margens do rio Amônia, no município de Marechal Thaumaturg­o (560 km a oeste de Rio Branco e 2.800 km a noroeste de São Paulo, em linha reta).

A cidade é a única do estado do Acre que tem um índio como prefeito: Isaac Piyãko, ashaninka, venceu a eleição de 2016 com 56% dos votos. A etnia compõe apenas cerca de 5% da população, de 18 mil pessoas.

A vitória de Piyãko é atribuída à sua profissão: professor da rede pública, a mesma ocupação do vice-prefeito e de 2 dos 9 vereadores.

Os ashaninkas são um dos grupos indígenas cuja história é conhecida há mais tempo: há registros de seu relacionam­ento econômico e cultural com o império inca, que das montanhas do Peru dominou grande parte da América do Sul até a chegada dos espanhóis.

A antropólog­a francesa FranceMari­e Renard-Casevitz resume o intercâmbi­o entre ashaninkas e incas na época: “Penas, peles, algodão, tecidos e plantas (grãos, madeira) sobem a serra, enquanto o metal (machado de cobre, joia de ouro), talvez pedras semiprecio­sas, lã e outros tecidos descem para a floresta”. A própria autodenomi­nação da tribo contém o nome dos antigos parceiros.

Nas histórias contadas pelos europeus que dominaram o Peru a partir da década de 1530, os ashaninkas eram descritos como guerreiros da floresta quente que, por sua valentia e lealdade, serviam de guarda-costas para os últimos nobres. Estes, depois de perderem a capital, Cusco, se refugiaram em uma área próxima à floresta amazônica.

Ali, protegida por seus soldados, acostumado­s à vida na montanha, e pelos índios naturais da Amazônia, a corte inca sobreviveu 40 anos na cidade escondida de Vilcabamba. Ao ser capturado pelos espanhóis, em 1572, o último inca estava cercado de guerreiros ashaninkas.

Chamados pelos incas de “antis” ou “andes” (dependendo da pronúncia na língua quechua), o nome do grupo também sobrevive na geografia do continente como uma memória do tempo pré-colombiano. A área onde moravam os ashaninkas, nas encostas da cordilheir­a, ao norte de Cusco, era nomeada Antisuyo, terra dos antis.

Os espanhóis entenderam a palavra como se fosse a designação das montanhas e passaram a chamar assim toda a cordilheir­a, da Patagônia à Colômbia. Os Andes são, portanto, um registro da antiguidad­e da presença ashaninka.

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