Folha de S.Paulo

Mitos de criação do mundo mostram ligação com os incas

- Leão Serva

A ligação entre ashaninkas e incas é tão profunda que está registrada até nos mitos sobre a criação do mundo e do homem, como se os dois povos tivessem nascido um do outro.

A lenda é narrada por Moisés Piyãko, que em sua formação de xamã se dedica às tradições espirituai­s.

“Na história, os incas vieram logo depois de nós. Muito antigament­e, havia uma comunidade ashaninka, e, no centro dela, havia uma lagoa, de onde eles ouviam o canto de um galo. Um dia, uma pessoa pegou um anzol para pescar. Cada isca que punha pescava alguma coisa, galinhas e outros bichos que não existiam.”

Numa dessas vezes em que ele colocou o anzol, pescou um inca. Por isso, primeiro os incas viveram com os ashaninkas. Mas um dia, segundo a lenda, eles se afastaram para morar mais longe, e aí surgiu o povo inca. Eles nunca foram inimigos dos ashaninkas e também nunca os dominaram como fizeram com outros povos. Eles sempre viveram de igual para igual, mantinham relações de troca.

“O que meu povo precisava, buscava nas cidades dos incas. E o que eles precisavam, compravam dos ashaninkas. Os incas não sabiam andar na floresta, não desciam para a floresta, ficavam só na montanha. Ouvi essa história do meu avô, quando eu era pequeno.”

Segundo Moisés, os ashaninkas buscavam dos incas ferramenta­s, tecidos e cestarias, além de certos alimentos que eles tinham nas cidades e que os ashaninkas não plantavam. Os incas se interessav­am especialme­nte por penas de aves da floresta, para adornos.

Havia muitas diferenças de cultura entre eles, talvez a mais marcante fosse que os ashaninkas comiam carne de macaco, os incas não: “Eles só comiam coisas da montanha. E compravam peixes e pássaros da floresta, penas e couro de animais”.

O mesmo mito da criação narra também o surgimento dos não indígenas, que na língua deles se chamam wiracochas: “Depois que puxaram os incas, passou um tempo e o galo continuou cantando dentro do lago. Então o mesmo herói foi lá pescar de novo. Aí, quando ele puxou o anzol, veio um homem diferente, wiracocha. Eles ficaram com medo desse povo, que ninguém sabia quem era. Então pegaram um facão para cortá-lo. Mas de cada pedaço que cortavam nascia outro homem, que se multiplica­va rapidament­e, e eles ficaram com mais medo, desistiram de lutar e fugiram para longe daquele lugar, deixando os brancos por ali”.

Com a multiplica­ção desses estrangeir­os, representa­da pela chegada dos espanhóis, que rapidament­e dominaram o território do antigo império, Pawa, o deus supremo dos ashaninkas, guardou a sabedoria, transforma­ndo os sábios para que eles não contassem aos invasores os segredos de seus poderes.

“Até hoje ninguém entende como os incas faziam aquelas construçõe­s tão grandes. Eram poderes que eles tinham. Eles pensavam as coisas, desenhavam e, com os poderes, elas ficavam prontas. Também nós tínhamos poderes semelhante­s: os tecidos, por exemplo, eram feitos com poderes, sem o trabalho que temos que ter hoje em dia. As pessoas desenhavam um tecido e ele ficava pronto. Depois, esses poderes foram recolhidos, tudo fechado. As pessoas que tinham poderes foram transforma­das. Hoje, o mundo na floresta é todo encantado, formado de pessoas que tinham poderes e foram transforma­das em pássaros, árvores e animais.”

“Nossa vida está conectada na floresta. Tem pássaro que fala frases inteiras em nossa língua. Quando nós fazemos nossas festas religiosas, reproduzim­os músicas que os pássaros Segundo a narrativa ashaninka, Pawa escondeu a sabedoria ao transforma­r os sábios em animais. Mas precisava preservar a capacidade de alguns homens de acessar esses conhecimen­tos. Para isso criou então a ayahuasca, que põe os homens em contato com o mundo espiritual.

“Depois que Pawa transformo­u todas as pessoas que achou que era necessário, ele transformo­u horoa, a mulher, em uma folha, a chacrona; e o homem ele transformo­u em um cipó, que nós chamamos de kamarampi, e os incas chamavam de ayahuasca.”

“O casamento desse homem com essa mulher é a chave para a gente conseguir penetrar em todos os encantos que estão guardados. Pawa

deixou esse ensinament­o de como seria possível decifrar os segredos. Com kamarampi você pode conversar com os pássaros e com os outros animais encantados, como nós estamos falando aqui. A bebida que tomamos nos rituais é a mistura do homem e da mulher. É a chave para acessar os ensinament­os.”

Os ashaninkas reivindica­m a primazia do conhecimen­to da ayahuasca, hoje presente em diversas culturas indígenas do Acre. Moisés afirma que seu avô, Samuel, um grande líder histórico (pinkatsari) dos ashaninkas do Acre, ensinou os segredos da ayahuasca a Mestre Irineu, o seringueir­o que fundou a religião do Santo Daime.

“A nossa história é muito grande, muito antiga. O uso da ayahuasca

como chave para decifrar os segredos guardados por Pawa já vem de muito tempo. Depois, de um século para cá, a população da Amazônia começou a tomar ayahuasca. Foi meu avô que serviu kamarampi pela primeira vez para o Mestre Irineu. E ele criou um rito, e depois vieram outros e criaram outros e outros. E isso nós não aceitamos, porque não há tantos mundos espirituai­s, tão diferentes. Só há um mundo espiritual, porque Pawa é único, não há tantos assim para escolher. Só há um, e você recebe, conforme seu mereciment­o, o que é bom ou ruim.”

Entre os ashaninkas, o consumo ritual de kamarampi é feito em grupos de até seis pessoas, em reuniões discretas, em torno de um xamã, como Moisés. A finalidade é ouvir o mundo espiritual, receber ensinament­os, entender situações. É um momento de concentraç­ão, por assim dizer.

Já as festas coletivas (chamadas piarentsi) reúnem toda a aldeia e convidados, que consomem caiçuma, uma bebida levemente fermentada, feita de mandioca ou batata.

Essas festas têm um papel muito importante na vida dos ashaninkas,

porque expressam alegria, gratidão e proximidad­e entre as pessoas da comunidade. Ao mesmo tempo, são “um termômetro para medir os ânimos dos deuses”, como explica a antropólog­a Erika Mesquita, que estuda a visão dos ashaninkas sobre as mudanças climáticas: ao participar da festa com os índios, se o deus dono da chuva (Inkaniteri) fica bêbado, ele fará cair chuva forte; se não chove, é porque ele não se divertiu tanto. Mas se chove fraco depois de uma festa, é sinal de que os espíritos femininos ficaram alegres e bêbados.

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