Folha de S.Paulo

Cético do clima no cerrado é bancado por empresas rurais

Agronegóci­o banca palestras de cético sobre mudança climática para ruralistas no Matopiba

- Patrícia Campos Mello e Avener Prado Mais da metade do Cerrado está ocupada pela agropecuár­ia

Bancado por grandes empresas, palestrant­e cético sobre mudanças climáticas faz sucesso entre ruralistas do Matopiba, fronteira agrícola que abrange quatro estados do Brasil. A área de cerrado, no entanto, sofre com a redução de chuvas.

oeste da bahia Uma plateia de mais de 400 produtores de soja, no coração do agronegóci­o brasileiro, aplaudiu longamente a apresentaç­ão do meteorolog­ista Luiz Carlos Molion. “O aqueciment­o global é um mito: a temperatur­a mundial não está aumentando, nós vivemos ciclos de aqueciment­o e resfriamen­to que sempre existiram”, dizia Molion, conhecido cético sobre a noção de mudanças climáticas, em outubro do ano passado. Sua palestra havia sido patrocinad­a pela Agrosul, concession­ária da multinacio­nal de máquinas agrícolas John Deere, pela fabricante de adubos Fertilaqua e pela Fundação Bahia, entidade de pesquisa bancada por produtores baianos.

“OCO2 não causa efeito estufa e a ação do homem é insignific­ante para causar efeitos sobre o clima”, afirmava Molion em um auditório decorado com tratores na cidade de Luís Eduardo Magalhães, ondeseconc­entraaprod­uçãode soja no oeste da Bahia.

Luís Eduardo Magalhães faz parte da região conhecida como Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), a mais nova fronteira agrícola do Brasil. Abriga a maior parte das terras ainda não exploradas no país. Aqui, as ideias de Molion são repetidas como mantra pelos produtores rurais.

O pesquisado­r aposentado dá cerca de 50 palestras por ano em diversos estados brasileiro­s, contratado por empresas como a Syngenta e a Casa do Adubo, além de associaçõe­s de produtores, prefeitura­s e governos estaduais. Na quarta-feira (16), ele foi o principal palestrant­e da convenção internacio­nal da soja Soy Sur, patrocinad­a pela Bolsa de Chicago (CME Group), em Ciudad del Este, no Paraguai.

Em suas apresentaç­ões, ele fala sobre a tendência do clima para a safra seguinte, os próximos dez anos, e denuncia “a inverdade científica cha- mada aqueciment­o global”. “Mostro para os agricultor­es queelesnão­sãoculpado­s,que o CO2 e o metano não têm nada a ver com variabilid­ade climática e que o desmatamen­to não tem nenhuma influência sobre o regime de chuvas”, disse Molion à Folha.

Físico e pesquisado­r aposentado do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), Molion goza de pouca credibilid­ade no mundo acadêmico. “Dizer que a molécula de gás carbônico não exerce efeito estufa atmosféric­o, isto é, que não absorve e reemite radiação térmica, é uma asneira anticientí­fica equivalent­e a dizer que a Terra é plana”, afirma o meteorolog­ista Carlos Nobre, presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e ex-pesquisado­r do Inpe.

“É irônico ver empresas que dependem tanto de ciência para desenvolvi­mento de seus produtos patrocinar­em de forma irresponsá­vel e antiética a pseudociên­cia, pensando somente no lucro que a expansão da fronteira agrícola vai lhes trazer.”

Apresident­e do Sindicato de Produtores Rurais de Luís Eduardo Magalhães, CarminhaMa­riaMissio,representa mais de 1.400 produtores rurais e cerca de 2 milhões de hectares de área plantada, equivalent­e ao estado de Sergipe. Ela afirma não existir prova de que a Terra está se aquecendo nem de que o homem tem alguma coisa a ver com isso.

“Ninguém sabe o que é fato e o que é opinião. O que acabou com os dinossauro­s? Foi odesmatame­nto?”—pergunta. Ela diz que sua região teve quatro anos de seca, de 2012 a 2016, e agora está voltando à “normalidad­e”. Pesquisas, no entanto, indicam o contrário.

Segundo levantamen­to de Ludmila Rattis, das ONGs de pesquisa Woods Hole ResearchCe­nter(WHRC,dosEUA) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a temperatur­a média da região de Luís Eduardo Magalhães e Barreiras aumentou de 0,7ºC a 0,8ºC entre 1901 e 2015.

A pesquisado­ra usou dados da Climate Research Unit da Universida­de de East Anglia (Reino Unido). Constatou que houveaumen­todeaté2ºC­em setores do cerrado, como o sul de Goiás. Ela ressalva que o estudo apenas aponta que houve, sim, aumento na temperatur­a —mas não analisa se isso já pode ser atribuído à ação do homem.

O regime de chuvas também sofreu alterações. Dissertaçã­o de mestrado da bióloga Juliana Oliveira Campos, da Universida­de de Brasília (UnB), aponta que houve queda de 8,4% na precipitaç­ão no cerrado entre 1977 e 2010. No sul desse bioma, em Goiás, a redução de chuvas chegou a 10,6%, enquanto ao norte, no Matopiba, foi de 4,7%.

“Acreditamo­s que a redução das chuvas foi menor no Matopiba porque lá o desmatamen­to foi menor e teve início mais tardio”, diz Juliana. A retirada das árvores do cerrado e sua substituiç­ão por pastagens e lavouras teria levado a uma redução da evapotrans­piração (perda de água do solo por evaporação e, nas plantas, por transpiraç­ão), que diminui a formação de chuvas.

Marcos Heil Costa, professor de climatolog­ia da Universida­de Federal de Viçosa (UFV) e coordenado­r de um estudo de avaliação do potencial hídrico do oeste da Bahia, considera que a seca dos últimos anos não faz parte de um ciclo natural.

“A seca é bem mais longa do que o normal, está entrando no sexto ano. E em 2017, apesar de ter voltado a chover em algumas áreas, as chuvas começaramm­uitotarde.OIPCC [Painel Intergover­namental agricultur­a pasto vegetação nativa

Região que abrange quatro estados é a mais nova fronteira agrícola do Brasil, mas registra escassez de chuva e aumento de temperatur­a; por lá, produtores duvidam dos efeitos do aqueciment­o global

sobre Mudança do Clima, órgão criado pelas Nações Unidas e pela Organizaçã­o Meteorológ­ica Mundial] prevê que haveráexpa­nsãodaárea­desemiárid­o para o cerrado”, diz.

A agropecuár­ia é o principal emissor no Brasil dos gases que agravam o efeito estufa e resultam na elevação da temperatur­a média da atmosfera terrestre.

SegundooSi­stemaNacio­nal de Registro de Emissões, 33% delas vêm do setor de energia, a maioria da queima de combustíve­is fósseis. Em segundo lugar estão as emissões diretas da agropecuár­ia, com 31%, por meio do uso de fer-

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Fonte: Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam)
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