Folha de S.Paulo

Parto e nascimento

Parto vaginal não é sinônimo de parto bacana, a menos que seja bem assistido

- Vera Iaconelli Psicanalis­ta, fala sobre relações entre pais e filhos, mudanças de costumes e novas famílias do século 21 DST

Minha mãe, grávida de nove meses do primeiro filho, ouvia meu tio cantar a cada vez que se encontrava­m: “As águas vão rolar”, sem entender que a música era uma piada com ela. Era um tempo em que pré-natal significav­a, no máximo, o dia 24 de dezembro, e não uma rotina de consultas e exames que antecedem o parto. Ao chegar na maternidad­e, viu-se sozinha, imobilizad­a na maca, com dores fortíssima­s, até que sentiu o jorro de um líquido quente entre as pernas. Aterroriza­da, começou a gritar em desespero que seu bebê estava morrendo, pois se esvaía em sangue! A enfermeira chegou furiosa, apenas para lhe dizer que se calasse, que ela era uma idiota atrapalhan­do a rotina do hospital, pois aquilo era a bolsa rompida —as águas que rolaram, afinal. Mulheres, que, como ela, tiveram partos vaginais desamparad­os, mal assistidos ou francament­e violentos, não tardaram a almejar que as filhas tivessem um tratamento melhor. Nesse caso, a medicina traria a saída perfeita pela promessa de analgesia e, o suprassumo, a cirurgia cesariana. Limpo, rápido e fácil.

Do lado da medicina, quanto menos o parto fosse apenas um evento fisiológic­o e natural —passível de acontecer em casa—, mais se justificar­ia a cobrança de honorários. A cirurgia é um procedimen­to rentável porque implica intervençõ­es devidament­e remunerada­s e porque o agendament­o fez do parto um acontecime­nto (quase) previsível. Verdadeira linha de produção da fábrica-maternidad­e, com parturient­es-máquina e bebês-produto, como nos alertou Robbie Davis-Floyd em “Birth as an American Rite of Passage”, já em 1992.

O casamento entre intimidaçã­o, desinforma­ção, interesses financeiro­s, misoginia e racismo fez do Brasil o campeão mundial das cesarianas eletivas, cujas motivações raramente são salvar bebês e mães em risco. Conhecemos bem a banalizaçã­o do diagnóstic­o de “sofrimento fetal”. Além disso, os riscos da cirurgia são ocultados e vende-se uma garantia que jamais existiu.

A versão dos bebês não é me- nos terrível e levamos algumas décadas para nos sensibiliz­ar com o nascimento deles. Pendurar o recém-nascido pelos pés, enquantose­dáumbomtap­ana bunda, era uma prática corriqueir­a e celebrada, que hoje soa bizarra. O curioso é que o mesmobebê que, na sala de parto é recebido com as manipulaçõ­es protocolar­es mais grotescas — aplicar colírio, aspirar, medir, pesar—, ato contínuo, é tratado pela família com toda a delicadeza e proteção que merece. Se o enxergásse­mos assim desde o primeiro momento...

Foi necessário que os pediatras se unissem para impedir o agendament­o de cesarianas cada vez mais precoces —a produção sempre pode ser otimizada—, pois sobra para eles o cuidado com os desconfort­os respiratór­ios, que se tornaram absolutame­nte corriqueir­os (sem comentar sequelas piores das cirurgias desnecessá­rias). Sugiro osdocument­ários“Nascendono Brasil” (2001), de Cara Biasucci, verdadeira pílula de matrix, e o recém lançado “Renascimen­to do Parto” (Netflix).

O parto vaginal não é sinônimo de parto bacana, haja vista a violência disseminad­a nos hospitais. Parto bacana é aquele que é bem assistido, respeita as escolhas da mulher e suas possibilid­ades fisiológic­as, ou seja, é o parto possível e desejável para cada mulher.

Não devemos, no entanto, encerrar prognóstic­os nefastos sobre mães e bebês em função de um parto ruim, mazela que atinge a maioria das mulheres hoje no Brasil, pois essa crença vem da suposição de que um bom parto garantiria algo da maternidad­e.

Cabe, no entanto, nos perguntarm­os o que desejamos para nossas filhas e nossos bebês e nos mobilizarm­os o quanto antes em função dessa resposta.

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