Parto e nascimento
Parto vaginal não é sinônimo de parto bacana, a menos que seja bem assistido
Minha mãe, grávida de nove meses do primeiro filho, ouvia meu tio cantar a cada vez que se encontravam: “As águas vão rolar”, sem entender que a música era uma piada com ela. Era um tempo em que pré-natal significava, no máximo, o dia 24 de dezembro, e não uma rotina de consultas e exames que antecedem o parto. Ao chegar na maternidade, viu-se sozinha, imobilizada na maca, com dores fortíssimas, até que sentiu o jorro de um líquido quente entre as pernas. Aterrorizada, começou a gritar em desespero que seu bebê estava morrendo, pois se esvaía em sangue! A enfermeira chegou furiosa, apenas para lhe dizer que se calasse, que ela era uma idiota atrapalhando a rotina do hospital, pois aquilo era a bolsa rompida —as águas que rolaram, afinal. Mulheres, que, como ela, tiveram partos vaginais desamparados, mal assistidos ou francamente violentos, não tardaram a almejar que as filhas tivessem um tratamento melhor. Nesse caso, a medicina traria a saída perfeita pela promessa de analgesia e, o suprassumo, a cirurgia cesariana. Limpo, rápido e fácil.
Do lado da medicina, quanto menos o parto fosse apenas um evento fisiológico e natural —passível de acontecer em casa—, mais se justificaria a cobrança de honorários. A cirurgia é um procedimento rentável porque implica intervenções devidamente remuneradas e porque o agendamento fez do parto um acontecimento (quase) previsível. Verdadeira linha de produção da fábrica-maternidade, com parturientes-máquina e bebês-produto, como nos alertou Robbie Davis-Floyd em “Birth as an American Rite of Passage”, já em 1992.
O casamento entre intimidação, desinformação, interesses financeiros, misoginia e racismo fez do Brasil o campeão mundial das cesarianas eletivas, cujas motivações raramente são salvar bebês e mães em risco. Conhecemos bem a banalização do diagnóstico de “sofrimento fetal”. Além disso, os riscos da cirurgia são ocultados e vende-se uma garantia que jamais existiu.
A versão dos bebês não é me- nos terrível e levamos algumas décadas para nos sensibilizar com o nascimento deles. Pendurar o recém-nascido pelos pés, enquantosedáumbomtapana bunda, era uma prática corriqueira e celebrada, que hoje soa bizarra. O curioso é que o mesmobebê que, na sala de parto é recebido com as manipulações protocolares mais grotescas — aplicar colírio, aspirar, medir, pesar—, ato contínuo, é tratado pela família com toda a delicadeza e proteção que merece. Se o enxergássemos assim desde o primeiro momento...
Foi necessário que os pediatras se unissem para impedir o agendamento de cesarianas cada vez mais precoces —a produção sempre pode ser otimizada—, pois sobra para eles o cuidado com os desconfortos respiratórios, que se tornaram absolutamente corriqueiros (sem comentar sequelas piores das cirurgias desnecessárias). Sugiro osdocumentários“Nascendono Brasil” (2001), de Cara Biasucci, verdadeira pílula de matrix, e o recém lançado “Renascimento do Parto” (Netflix).
O parto vaginal não é sinônimo de parto bacana, haja vista a violência disseminada nos hospitais. Parto bacana é aquele que é bem assistido, respeita as escolhas da mulher e suas possibilidades fisiológicas, ou seja, é o parto possível e desejável para cada mulher.
Não devemos, no entanto, encerrar prognósticos nefastos sobre mães e bebês em função de um parto ruim, mazela que atinge a maioria das mulheres hoje no Brasil, pois essa crença vem da suposição de que um bom parto garantiria algo da maternidade.
Cabe, no entanto, nos perguntarmos o que desejamos para nossas filhas e nossos bebês e nos mobilizarmos o quanto antes em função dessa resposta.