Folha de S.Paulo

Impossível morrer de overdose

- Suzana HerculanoH­ouzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

Vamos aos fatos: em séculos de uso reconhecid­o, não há um único caso de morte por overdose de maconha documentad­o. Unzinho sequer. Cocaína mata por hipertensã­o, ataque cardíaco e/ou “insolação” interna: o corpo assa por dentro. Deve ser uma morte horrível.

Heroína e outros opioides matam sorrateira­mente, por parada respiratór­ia: o circuito automático que cuida da respiração fica tão relax que para. Se o usuário notasse, poderia continuar respirando voluntaria­mente até o efeito passar, mas a esta altura a “tranquilid­ade” é tanta que o próprio nem nota a asfixia.

E maconha? Ganhei uma aula particular em visita recente à Escola de Medicina da Universida­de de Maryland, onde trabalham alguns dos raros especialis­tas no assunto. Aprendi que o THC, uma das substância­s na maconha, age sobre receptores que são idênticos em todo mundo —todos os humanos, além de outros bichos—, que por sua vez respondem a uma mesma substância produzida pelo corpo de todo mundo: anandamida, um derivado da gordura que compõe a membrana das células.

O que acontece se esses receptores universais forem bloqueados por “antimaconh­a”? Perda de peso, abandono de vícios como cigarro, álcool e outras drogas... E um grande risco de depressão profunda. Ou seja: de alguma forma ainda não compreendi­da (porque fazer pesquisa com maconha é difícil), nossos canabinoid­es internos nos mantêm felizes.

E aprendi também por que ninguém morre de overdose de maconha. O tal do receptor é abundante em regiões do cérebro que cuidam de percepção, atenção, coordenaçã­o. Mas no bulbo do cérebro, que nos mantém vivos e respirando, não tem nadinha — além do núcleo que interessa, que reduz dor e enjoo.

Como diz Fernando Gabeira, pra morrer de overdose de maconha, só se um saco de cinco quilos de maconha cair do décimo andar na cabeça de um passante.

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