Folha de S.Paulo

O século de Candido

Um ano após a morte de Antonio Candido e às vésperas de seu centenário, acervo do crítico é aberto para exposição em sua homenagem e textos inéditos começam a ser publicados

- Maurício Meireles

são paulo Aos dez anos, Antonio Candido passou a acumular cadernos —orientado por sua mãe a escrever sobre suas leituras, o maior crítico literário do país fez notas até às vésperas de sua morte, há um ano. No dia 24 de julho, é comemorado seu centenário.

Ao todo, deixou 126 cadernos —e um amplo acervo, que foi doado para a USP e deve ser disponibil­izado no próximo ano, com o material de sua mulher, a professora Gilda de Mello e Souza (1919-2005).

Os cadernos fazem parte de um conjunto de 45 mil itens textuais, 800 discos e 5.000 fotos, além de uma coleção de filmes. Sua biblioteca, com cerca de 7.000 livros, irá em breve para a Unicamp.

“Não há, no Brasil, um acervo dessa importânci­a. Vai demorar um século lidar com esse material. O do Mário de Andrade já está sendo pesquisado há 50 anos e ainda não se esgotou”, diz Walnice Nogueira Galvão, professora emérita da USP e ex-aluna de Candido.

Esse século começa nesta semana, com a primeira exposição dos documentos do crítico, no Itaú Cultural, que patrocina o tratamento de seu acervo. A Ocupação Antonio Candido é aberta nesta quarta (23), com um colóquio em homenagem ao autor. ele e o crítico uruguaio Ángel ro Sobre Azul, editora da filha de Candido, Ana Luisa Escorel.

Um volume com a correspond­ência entre Getulio Vargas e sua filha Alzira, que sai no mês que vem pela mesma editora, trará um inédito do crítico literário sobre o período, escrito nos anos 1990 — durante a Era Vargas, Candido foi um opositor do político.

Há pelo menos mais um inédito no prelo. A editora 34 lança um volume em homenagem a ele com 30 textos, organizado por Maria Augusta Fonseca e Roberto Schwarz.

O livro, que começou a ser era vivo, com vistas a seu centenário, traz ao final o inédito “Como e por que Sou Crítico”.

Quem visitar a exposição terá a chance de ler os primei- prensa —publicados na coluna Notas de Crítica Literária, que saía na Folha da Manhã,

Folha.

Nesse espaço, Candido foi cerem o talento literário de autores como Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.

“A intensidad­e com que sabe escrever e a rara capacidade de vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura”, previa ele, em uma coluna de 1944 sobre “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice.

A atuação de Candido na imprensa também é lembrada com reproduçõe­s do Suplemento Literário, criado por ele e publicado no jornal 1956 a 1974 —um dos marcos do jornalismo cultural no país

Sua participaç­ão nas revistas Clima, nos anos 1940, e Argumento, nos anos 1970, tam- plares e textos expostos.

Um dos destaques das anotações do crítico literário é a revisitaçã­o que fazia de ideias passadas —seja para aperfeiçoá-las, seja para corrigi-las.

“Tem um artigo em que ele fala: ‘Como eu pude dizer isso do meu autor preferido?”, diz Laura Escorel, neta do intelectua­l, que morou com ele até a morte do avô, lembrando que o favorito dele era Proust.

Outra parte da mostra é dedicada ao clássico “Formação da Literatura Brasileira” (1959), no qual Candido se dedicava a entender como havia se constituíd­o o sistema literário pátrio. O original da obra vai estar lá.

A pesquisa de doutorado do intelectua­l, “Os Parceiros do Rio Bonito”, um ensaio sobre o caipira paulista, também ganha espaço —inclusive com as fotos que ele tirou durante ao trabalho.

O acervo iconográfi­co também traz a vida familiar do crítico literário, com fotos de todas as fases de sua vida.

Em uma delas, de 1938, ele manda um retrato para a família em que posa com um cão. Mas adverte: “Eu sou o de branco. Aviso porque vocês podem ter esquecido a minha cara e me confundire­m”.

A ocupação dedica ainda uma seção à relação de Candido e Gilda. Em depoimento à neta Laura, o crítico conta como ela começou.

Saíram para tomar um café com leite no centro, e ela confessou estar apaixonada por Décio de Almeida Prado e achava não ser correspond­ida.

“Acho que ela estava transborda­ndo [para contar aquilo a um desconheci­do]”, diz Can- dido num depoimento gravado. Os dois ficaram amigos e só depois se apaixonara­m, casando-se em 1943.

“Não tive paixão nem ela por mim. Foi um interesse de afinidade, estilo. Aí passou para o amor facilmente. A paixão é uma doença [...], feito uma gripe. [...] é muito irracional.”

De acordo com Laura Escorel, era sobre Gilda que Candido escrevia em seus cadernos pouco antes de morrer — uma parte deles, a mais pessoal, continua com as herdeiras.

“Temos diários que vão até dois dias antes da morte dele”, diz Laura. “E ele escreve para as filhas: ‘Olha, sua mãe está me chamando’. Diz que está sentindo a presença da minha avó muito intensa.”

“Ele estava extremamen­te lúcido, mas percebendo que o mecanismo ia falhar.”

Ocupação Antonio Candido

Itaú Cultural, av. Paulista, 149, tel. (11) 2168-1777. Abertura: qua. (23), às 19h; de ter. a sex., das 9h às 20h; sáb., dom. e fer., das 11h às 20. Até 12/8. Grátis.

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Acervo IEB-USP/Divulgação O professor e crítico literário Antonio Candido, em Bofete (SP), em 1948
 ??  ?? Candido em 1938, em foto enviada para a família com anotação no verso (à esq.): “Eu sou o de branco. Aviso porque vocês podem ter esquecido a minha cara e me confundire­m”.
Candido em 1938, em foto enviada para a família com anotação no verso (à esq.): “Eu sou o de branco. Aviso porque vocês podem ter esquecido a minha cara e me confundire­m”.
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