Folha de S.Paulo

Disforia de gênio: uma introdução

O disfórico nunca duvida de sua arte, mesmo que os outros se horrorizem

- João Pereira Coutinho Doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

“Disforia de gênio”: para quando um tratado médico sobre o assunto? Atenção às palavras: não falo de “disforia de gênero”, distúrbio que acontece quando alguém nasce com um determinad­o sexo (biologicam­ente falando) e se identifica com o sexo oposto.

A “disforia de gênio” é outra coisa: um estado de dissonânci­a, sim, mas entre cérebros —o real e o imaginário. A pessoa nasce com capacidade­s nulas para, sei lá, cantar ou dançar —mas acredita ser um gênio em qualquer dessas artes.

Honestamen­te, não sei quantos exemplares conheci nesta vida com tal problema. Na adolescênc­ia, era um todos os dias, normalment­e com uma queda patológica para a poesia.

Depois, quando a idade adulta batia à porta, a “disforia de gênio” tendia a desaparece­r com as contas para pagar. Mas muitos continuava­m a sofrer do distúrbio pela vida fora. Alguns fizeram carreira.

Mas como reconhecer alguém que sofre de “disforia de gênio”?

A primeira caracterís­tica, creio eu, é uma confiança ilimitada nas suas capacidade­s para uma determinad­a arte ou profissão. Poesia, música, teatro —o disfórico nunca duvida dos resultados da sua arte, mesmo que os outros se horrorizem perante os resultados.

O disfórico, contrariam­ente às pessoas com genuíno talento, nunca tem inseguranç­as, frustraçõe­s —nunca sofre daquela “síndrome do impostor”, em que o indivíduo tem a sensação de que pode ser descoberto por terceiros como o impostor que (não) é.

Para o disfórico, impostores são os outros. O que nos leva à segunda caracterís­tica: a incompreen­são. Não é ele que sofre de ausência de talento; é a humanidade em geral que não tem o talento necessário para reconhecer o talento que ele possui.

Críticas negativas, em geral, têm o efeito inverso do pretendido: reforçam a crença na conspiraçã­o —e na singularid­ade do sujeito criativo.

Em terceiro lugar, quem sofre de “disforia de gênio” tende a combinar uma mistura de preguiça e presunção que se traduz no horror por qualquer forma de formação ou educação.

O escritor “genial” não lê. O pintor “genial” não frequenta museus. O filósofo “genial” não estuda outros filósofos. E etc. etc. O talento é “natural” —ou não é. E, se é “natural”, é preciso “pensar fora da caixa” (o mantra preferido da tribo).

Existe, assim, um cisma inultrapas­sável entre “trabalho” e “criação”: onde há “criação”, não pode haver “trabalho”. A expressão “trabalho criativo” é um oxímoro para quem sofre de “disforia de gênio”.

Conheci vários desses pacientes, repito. Mas se o leitor não teve essa sorte, por que não assistir a “Artista do Desastre”, o longa de James Franco que me escapou na altura devida?

Com talento (genuíno), Franco revela-nos Tommy Wiseau, o lendário autor do pior filme jamais feito. Uma distinção que transformo­u Tommy (e o filme, “The Room”) em objeto de culto.

Franco nos relata a criação desse fenômeno. E então encontramo­s Tommy, viajando para Los Angeles na companhia de um amigo igualmente ambicioso, em busca da fama merecida.

A fama não vem porque o talento não existe. Mas Tommy, como um bom disfórico, não aceita o diagnóstic­o de terceiros. Com uma fé inabalável na sua genialidad­e, escreve um roteiro; contrata uma equipe de produção; compra o material necessário para filmar a sua obra-prima; e assume o lugar de ator principal.

O que vemos a seguir depende da perspectiv­a. Para nós, meros mortais, Tommy Wiseau é incapaz de dirigir ou representa­r, embora o verbo certo seja “funcionar”. No caso, “funcionar” no mundo real, fora do manicômio.

Não para Tommy, que nunca duvida dos seus propósitos. E se a sua equipe, entre o pasmo e desespero, grita e desmaia com os seus modos tirânicos, Tommy encara esses comportame­ntos como confirmaçã­o da sua originalid­ade.

No final, quando o filme estreia e a sala ri com o resultado que passa na tela, Tommy Wiseau tem um momento de frustração e dúvida. “Serei uma anedota?”, pergunta ele ao amigo.

É um momento de fraqueza que dura pouco. Se os outros riem, isso é prova do seu gênio insondável: o alquimista conseguiu transforma­r um drama em comédia. Tudo está bem quando acaba bem?

Precisamen­te. Essa, aliás, é a caracterís­tica final do disfórico de gênio: aconteça o que acontecer, tudo acaba bem para quem nunca fez nada mal.

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Ângelo Abu

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