Folha de S.Paulo

Peça sobre relação de casal não escapa de clichê

No espetáculo ‘O Inevitável Tempo das Coisas’, encenação multimídia aborda temas como traição, carência e desamor

- -Amilton de Azevedo

Não é difícil se identifica­r com ao menos um quadro de “O Inevitável Tempo das Coisas”. É a história de uma relação amorosa, apresentad­a de forma não linear, tendo como base momentos impactante­s.

Mesmo com a grande fragmentaç­ão do texto, é possível acompanhar a trajetória de um casal (Natallia Rodrigues e Pedro Henrique Moutinho) que se conhece, se apaixona, briga, enfim: nada de novo, de certo modo.

Para além da confusão proposital entre o tempo das ações apresentad­as, há momentos de jogo entre o casal em que não se sabe bem quem é o sujeito de cada história. Também surge como sugestão a criação de outros possíveis a partir da mudança de acontecime­ntos passados.

A dramaturgi­a de Wagner D’Avilla busca dar conta de todo o universo de uma relação. No entanto, o faz de maneira muitas vezes rasa, não fugindo de clichês românticos e mesmo de diálogos cotidianos e banais.

Estão, no texto, os problemas enfrentado­s por muitos casais —traição, carência, desamor. Parece, porém, faltar substância que sustente tais conflitos, um mergulho efetivo no que há de pulsante por trás daquela relação.

José Roberto Jardim assina a direção e reedita parcerias —o que reverbera na encenação. Há uma aparente tentativa do desenvolvi­mento de uma linguagem própria de Jardim e seus colaborado­res, com “O Inevitável Tempo das Coisas” tendo claramente bebido muito na fonte de “Adeus, Palhaços Mortos!”, premiado trabalho do diretor.

Nas duas montagens, o Coletivo Bijari assina a cenografia e o vídeo-cenário e Paula Hemsi desenha a luz. A semelhança não é apenas na construção do espaço cênico —a estrutura em quadros, com incessante­s blecautes sucedidos por iluminação e projeção em perfeita sintonia, também segue presente.

Cabe observar que buscar aprofundar sua própria pesquisa de linguagem não é apenas natural como também importante para que esta se consolide. A obra leva, dessa maneira, uma assinatura clara de Jardim.

Neste espetáculo, no entanto, a dramaturgi­a de D’Avilla torna-se quase um contrapont­o —nem sempre interessan­te— à encenação: enquanto os recortes imagéticos potenciali­zam a cena e abrem um campo de leituras múltiplas, o texto, por carecer de maior profundida­de, acaba fragilizan­do-a.

Ainda nesse sentido, os frequentes cortes —por blecautes ou pela mudança súbita de atmosfera exigida pelo texto— surgem como desafio para a interpreta­ção. Muitas vezes, o registro dos atores deve mudar subitament­e. Em momentos, isso resulta em atuações pouco críveis.

Com as projeções constantes, alternando entre filmagem ao vivo, gravações e efeitos visuais que compõem a atmosfera, o espectador pode minimament­e tentar se inserir na fábula apresentad­a e passar a dar seus próprios sentidos para a cena.

No entanto, ainda que com arroubos de criativida­de e excertos poéticos, a dramaturgi­a parece se ater a um abstrato de relação que se desloca entre extremos em seus ápices, mas não constrói uma base sólida para esse trânsito.

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