Folha de S.Paulo

Obra de Roth expressou o máximo pelo mínimo

Em seus livros, autor condensou em tom seco a ternura escondida no cotidiano de pessoas e fatos desimporta­ntes

- -Noemi Jaffe

Herman adverte Lil de que, para abrir a lata de sopa Campbell’s, é preciso segurá-la por baixo. “Você não está segurando por baixo. Segure por baixo.” “Eu sei abrir uma lata de sopa.” “Mas você não está segurando direito.”

A discussão do pai com a namorada irrita Philip Roth, que, da sala, grita: “Você está à beira de uma catástrofe, seu idiota, deixa ela abrir a porra da lata do jeito que ela quiser!”.

Mas, ao mesmo tempo, ele se dá conta de que não, nada importa mais que segurar a lata direito e que foi isso que manteve o pai vivo por 86 anos e que o mantinha vivo naquele então, à beira da morte. “Segure por baixo, Lil —ele sabe o que está dizendo.”

Penso que esse episódio, narrado no livro “Patrimônio”, sobre a morte de seu pai e os cuidados que o escritor lhe dispensou, seja uma metonímia de sua própria obra.

Há aqui o “seu idiota”, dirigido ao pai; o “porra da lata”, criticando o ridículo da situação e sua falta de cabimento para o momento —a iminência da morte; e há a constataçã­o seguinte de que não, de que o que importa mesmo na vida de uma pessoa comum é como abrir a lata de sopa. A secura e a ternura difícil; o máximo expresso pelo mínimo.

Em 2007, teimei que conseguiri­a entrevistá-lo. Iria a Nova York e queria porque queria conseguir o inalcançáv­el.

Escrevi uma carta para seu agente, o intranspon­ível Andrew Wylie, dizendo que eu tinha nascido num bairro semelhante a Newark, de judeus imigrantes, que os personagen­s que me interessav­am se pareciam aos vizinhos de Roth e que, como era impossível mesmo entrevistá-lo, eu escrevia uma carta sobre o impossível, porque é essa a matéria dos escritores. Três dias mais tarde, soube que ele me receberia em Nova York.

Li 12 livros dele em um mês; anotei as perguntas mais espertas, filosófica­s e desafiante­s. Cheguei lá e ele me recebeu com cara de poucos amigos.

O que ler de Philip Roth

‘Teatro de Sabbath’

Este livro é o auge da prosa de Philip Roth, que via a obra como sua melhor. O romance irônico e despudorad­o mostra a figura de Mickey Sabbath, ex-titereiro desemprega­do e metido em aventuras sexuais. Ele entra em crise quando sua amante, Drenka, morre.

‘A Marca Humana’

É um romance que tematiza o politicame­nte correto. Um professor de letras se vê obrigado a deixar o emprego, depois que é acusado de racismo. Em seguida, ainda há uma acusação de abuso sexual por uma faxineira que trabalha no campus. O personagem é execrado e precisa enfrentar uma batalha humilhante.

‘Pastoral Americana’

Este livro é narrado pelo alter ego do autor, o também escritor Nathan Zuckerman, que conta a história de Seymor Levov, estrela dos esportes nos tempos de escola do narrador. Ele vê sua vida ruir no turbilhão político dos anos 1960, quando sua filha de esquerda promove um atentado a bomba.

‘O Complexo de Portnoy’

Foi o primeiro romance que tornou Roth conhecido.

Nele, conhecemos Portnoy, um personagem que se masturba obsessivam­ente, ao ponto de usar um fígado cru. A narrativa é uma confissão do protagonis­ta no divã de seu terapeuta.

‘Homem Comum’

A trajetória de um homem comum é acompanhad­a até sua morte neste romance, um dos melhores da lavra tardia de Roth. O protagonis­ta é um personagem típico na obra do escritor, um homem que vê a decadência se aproximar e se vê confrontad­o com a degeneraçã­o do corpo pela velhice. Sem nome, o personagem é exmarido solitário de três mulheres diferentes. Quando eu fazia uma pergunta, ele dizia: “Onde você leu isso? Em que capítulo, em que parágrafo?”. Disse não a tudo o que eu perguntei. Que não tinha um único osso judeu em seu corpo. Olhou para mim com condescend­ência, aconselhou uma exposição em cartaz e me dispensou gentil, mas apaticamen­te.

Fiquei arrasada, me sentindo como uma fã da Xuxa que não conseguiu entrar no programa. Senti raiva do monumento e o xinguei de pedante.

Mas esse escritor pedante foi um dos primeiros a irem clandestin­amente a Tchecoslov­áquia durante a ditadura soviética e a conhecer autores como Milan Kundera.

Foi, posteriorm­ente, o pioneiro de uma “vaquinha” mensal de U$50 para cada escritor tcheco, que fazia questão de coletar entre os escritores americanos. E foi isso o que os manteve vivos e ativos.

É ele que se emociona quando, de herança, o pai lhe lega a caneca de barbear do avô, com sua “assombrosa superfluid­ade”. E é esse homem sem um osso judaico no corpo que entende que, para o pai, o templo do judaísmo era o vestiário do clube que ele frequentav­a.

Depois de escolher o silêncio da leitura, agora ele silencia para nós, que ficamos com o som inaudível de seus homens comuns, guardando canecas de barbear e segurando latas pelo lado de baixo.

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 ?? Bob Peterson/Time & Life Pictures/Getty Images ?? O escritor Philip Roth em 1968, em frente a escola e centro judaico em Newark, onde nasceu e cresceu
Bob Peterson/Time & Life Pictures/Getty Images O escritor Philip Roth em 1968, em frente a escola e centro judaico em Newark, onde nasceu e cresceu
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