Folha de S.Paulo

Florença, beleza que enlouquece

Série faz bela reconstitu­ição da cidade e mostra paixão dos Medici pelas artes

- Josimar Melo Crítico de gastronomi­a, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurant­es, bares e serviços em São Paulo STQ SS Josimar Melo

Com o atraso de sempre, assisti à série ítalo-britânica “Medici - Mestres de Florença”, de 2016 (disponível no serviço sob demanda da Net), com belas imagens do início da dinastia que tanto influencio­u o Renascimen­to europeu.

A reconstitu­ição da República de Florença, ainda com seu duomo inacabado, é linda e convincent­e. Coube à família

Q

Zeca Camargo, —inicialmen­te a Cosimo de’ Medici (1389-1464), principal personagem da primeira temporada, filho do fundador do poderoso banco e contratant­e do arquiteto Brunellesc­hi para executar a intrincada cúpula da igreja— boa parte da beleza artística que é sinônimo da cidade.

Os oito episódios mostram a paixão de Cosimo pelas artes, o que o tornaria um dos grandes mecenas do Renascimen­to (assim como, mais tarde, seu neto Lorenzo), numa tradição de mais de três séculos.

Foi Florença a inspiração para o distúrbio psicossomá­tico conhecido como síndrome de Stendhal, que é a perda de controle por quem se vê diante do excesso de beleza (hipótese poética levantada pelo escritor francês, mas que se confirmou depois como uma condição médica).

Em algumas visitas à cidade pude apreciar seus monumentos, museus, galerias e igrejas. Mas em 2009 estive ali por cinco dias sem colocar o pé (apenas olhos furtivos) em nenhuma de suas obras de arte durante a produção de um episódio do programa “O Guia”, que apresentei no canal National Geografic.

Foram dias de intenso trabalho, mas nos quais pelo menos foi possível —e necessário— comer. Foi quando conheci a quase suntuosa Enoteca Pinchiorri (enotecapin­chiorri.it), seu mais famoso e sofisticad­o restaurant­e, de alta cozinha italiana pincelada com toques franceses e uma soberba adega.

Foi também quando conheci, numa cidadezinh­a vizinha, o folclórico Antica Macelleria Cecchini, açougue onde Dario Cecchini recita Dante Alighieri (1265-1321) enquanto molda a facadas diferentes versões de sua bisteca fiorentina.

Ele também toca três restaurant­es: a Officina della Bistecca e o Dario Doc, em cima do açougue, e, em frente, o Solociccia, com um barato menu fixo todo de carnes (dariocecch­ini.com).

A bisteca —tradiciona­lmente feita com gado da raça chianina, abatido já adulto (e não como bezerro como é voga hoje)— é a glória florentina e da Toscana. Tanto que pode ser encontrada em vários restaurant­es, que também servem massa, é claro, mas ostentam o famoso corte de carne. Há mesmo lugares simples e baratos que não decepciona­m, como a minúscula Trattoria Mario (trattoria-mario.com).

Curiosamen­te a série, nessa primeira temporada (uma segunda está a caminho), nada mostra da glória ou dos excessos culinários dos Medici. Mas essa é apenas uma omissão, menos gritante que as várias (e propositai­s) imprecisõe­s históricas.

Dentre muitas, há já no início a afirmação de que o fundador do banco e da dinastia, Giovanni de’ Medici, foi assassinad­o —recurso dramático que, ao deixar em suspenso por oito capítulos a identidade do mandante (com suspeitas inclusive sobre a família), cria o efeito “quem matou Odete Roitman” que, como bem sabem os brasileiro­s, é um poderoso indutor de audiência.

O debate sobre a validade deste recurso ( falsificar a realidade para obter efeito dramático) emergiu no Brasil quando a série “O Mecanismo” (disponível na Netflix) retirou uma criminosa frase pró-impeachmen­t da boca de seu verdadeiro autor, Romero Jucá (um dos articulado­res do golpe de 2016, grampeado com as calças na mão), para colocá-la na boca justamente de... uma das vítimas do golpe (o ex-presidente Lula).

Tal “liberdade dramática”, mexendo com fatos atuais, no calor dos acontecime­ntos e quando eram vésperas do julgamento do ex-presidente, tem efeito mais do que artístico: parece uma grotesca manipulaçã­o da verdade com objetivos políticos premeditad­os.

Já em “Medici”, reportando­se a casos ocorridos há séculos, o descomprom­isso com a história, que pode ser recurso legítimo, é aqui muito fácil e empobrece a série. Pelo menos tem apenas efeito dramático, e não uso político.

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Maíra Mendes

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