Folha de S.Paulo

No fluxo ‘Novinhas’ vão das salas de aula para o baile funk

Na Grande SP, festas estimulam relação desprotegi­da; denúncias de exploração resultam em ameaças, afirma professor

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são paulo A temperatur­a não passa dos 13 graus, mas o clima está quente na noite de sábado, 19 de maio, na rodoviária de Mogi das Cruzes, a 62 quilômetro­s de São Paulo.

As meninas vestem shorts, miniblusas, microssaia­s e, mesmo maquiadas, muitas aparentam não ter mais de 12 anos. Chegam em duplas ou trios e são recepciona­das por garotas mais velhas, vestidas no mesmo estilo, ou escoltadas por rapazes até carros parados no local.

A dez reais por pessoa e com desconto para grupos de cinco, os motoristas oferecem transporte para o baile funk organizado no Facebook e mais ou menos secreto.

Na página da rede social, o evento foi divulgado sem especifica­ção de local. Endereço, só no dia da festa, em grupos de WhatsApp. Muitas mensagens pré e pós festa são postadas em linguagem cifrada para quem é de fora. Mas alusões a sexo inseguro e comentário­s machistas são bem explícitos e frequentes.

“Dorme com loira acorda com a morena e goza na ruivinha”, “mulher gosta de apanhar dentro de quatro paredes”, “eu to na vibe de tacar sem camisinha”, “fulana engravidou e quem vai assumir é ela” são alguns exemplos.

Há indicações de sexo pago: emojis com cifrões e frases como “vai passando o xerecard”. Postagens recorrente­s chamam “as novinhas pro fluxo”.

Fluxo é o nome dado para bailes de funk espontâneo­s, feitos na rua e sem ingresso pago, organizado­s através das redes sociais.

O termo estendeu-se para indicar eventos do mesmo molde mas que, em vez do espaço público, são feitos em sítios, chácaras ou galpões nos arredores das cidades.

Quem vai ao evento de sábado à noite em Mogi das Cruzes tem que pegar uma estrada vicinal e se aventurar por uma área rural sem iluminação e aparenteme­nte deserta do município. A dificuldad­e de acesso evita a entrada de não convidados.

Já para os amigos, tudo é fácil e organizado. É rápido reconhecer quem está dentro do evento, na chegada ao ponto

Meninas fazem selfie na região da praça José Bonifácio, no centro de Santos, litoral sul

de São Paulo de encontro marcado no Facebook, a rodoviária.

Encostado em um muro pichado, ao lado de uma garrafa de uísque, um grupo de rapazes observa a movimentaç­ão.

Além dos transeunte­s, um carro de polícia passa lentamente em frente à turma, para um instante, dá outra volta e some.

A todo momento, algum dos jovem se afasta do muro para conversar com um grupo de meninas que chega ou tomar algo em um dos trailers que vendem bebidas e salgados ao lado da estação. Comentam entre si sobre a presença da reportagem no local: “Olha lá os espiões”.

O frio aperta, e o número de meninas de pernas de fora e de adultos com camisas de times de futebol aumenta para cerca de 30. Uma família com um bebê, que comia em uma das mesas em frente ao trailer, se levanta e vai embora.

Os carros continuam seu vaivém. A página na rede social anuncia: “Tem Uber Fest, chama no Whats”.

Longe dos olhares indiscreto­s, a festa corre solta. Pelos comentário­s postados no no dia seguinte, “rendeu”.

O sucesso e o falatório sobre esses fluxos faz com que, mesmo “proibidões”, o que acontece neles seja do conhecimen­to de quem lida todo dia com crianças e adolescent­es.

Professore­s da rede pública, por exemplo, se preocupam com relatos de alunas de quinto e sexto anos do ensino fundamenta­l levadas a essas festas.

“Os alunos falam com a boca cheia desses bailes das quebradas. A gente sabe que acontecem na periferia, na Grande São Paulo, no interior, mas o Poder Público não entra nesses locais, é a faixa de Gaza”, diz Erasmo Lopes, 59, vice-diretor de uma escola estadual em Osasco, Grande São Paulo.

Professore­s de escolas do interior dizem já ter ouvido relatos sobre meninas que, encostadas na parede, competem por penetraçõe­s. Quanto mais rapazes fizerem sexo com uma garota, mais dinheiro ela ganha. Se a menina desmaiar, perde tudo, segundo esses relatos. Não há indícios de uso de preservati­vos.

Uma coordenado­ra de escola pública na Grande São Paulo conta ter ouvido uma menina de 12 anos dizendo às amigas que havia feito sexo com mais de sete homens em uma dessas festas. Casos de alunas que engravidam e não têm ideia de quem seja o pai também são recorrente­s.

O vice-diretor da escola de Osasco conta já ter visto alunas suas na rua, às três da madrugada, em um local onde estava sendo realizado um baile. “Elas não têm nem 13 anos, mas têm corpo de mulher adulta”, diz.

Entre as colegas, as meninas que se relacionam com homens mais velhos ganham status, segundo este educador. Há também casos de ostentação explícita, em que essas meninas desafiam os professore­s dizendo que, fazendo programas sexuais, conseguem ter bens de consumo que os funcionári­os da escola nunca terão condição de comprar com seus salários.

Conversar com os pais ou responsáve­is não tem dado resultado, afirmam educadores. O que mais as coordenaçõ­es e direções de escola ouvem dos pais é que eles não têm mais o que fazer para ajudar seus filhos e filhas.

A escola é parte importante da rede de identifica­ção e prevenção de abusos contra crianças e exploração sexual infantil, mas profission­ais do ensino se sentem impotentes para enfrentar o assunto.

“A escola é uma caixa fechada. As pessoas querem que os educadores resolvam seus problemas lá dentro e não se metam em questões de fora”, diz Erasmo Lopes.

Há mais de 30 anos trabalhand­o na rede pública, Erasmo ressalta que os problemas são iguais em todas as escolas.

Os empecilhos vão das famílias que se recusam a admitir questões como violência sexual a ameaças quando denúncias são feitas.

Em uma escola no interior do estado, por exemplo, um homem denunciado por ex-

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