Folha de S.Paulo

Crime invisível Jogo de faz de conta oculta infratores e prejudica proteção de vulnerávei­s

Testemunha­s mudas, vítimas coagidas e identidade­s falsas ajudam a sustentar esquema de exploração

- -Gustavo Fioratti

recife A estrutura invisível e silenciosa que alicerça a exploração sexual de crianças e adolescent­es dificulta a proteção dos grupos vulnerávei­s e a identifica­ção dos criminosos.

Os crimes são ocultados com identidade­s falsas e testemunha­s caladas, em um jogo de faz de conta do qual participam vítimas, comunidade, criminosos e autoridade­s.

No bairro de Boa Viagem, na capital pernambuca­na, prédios de classe média e alta dividem espaço com poucos cortiços. Assim que escurece, as avenidas Conselheir­o Aguiar e Domingos Ferreira se transforma­m em ponto de “caça”. Conforme a noite avança, aumenta o número de carros que dão voltas nos quarteirõe­s e reduzem a marcha diante de garotas e travestis.

A reportagem da Folha aborda um homem que circula pela região depois de ele conversar com uma das meninas de aparência muito jovem. “Ela era maior de idade”, despista. “Você não vai encontrar menor aqui, a polícia tem feito operações faz mais de um ano.”

A verdade é que ele, “cliente” potencial, não tem como ter essa certeza.

Uma das meninas nas ruas de Boa Viagem é M.B., que assume ter 17 anos —não para os explorador­es que a abordam, mas para a reportagem. Cabelos cacheados e bem cuidados, pele morena e voz tímida, ela diz morar em uma comunidade atrás de um shopping e oferecer sexo na rua apenas “para comprar roupas”.

Realidade ou fantasia, M.B. diz que não precisa contribuir com dinheiro em casa e que ninguém a força. E que aquela noite —uma quarta-feira no início de maio— é a primeira em que faz ponto na avenida.

Apelos de consumo estão entre os fatores que tornam adolescent­es de famílias pobres presas fáceis das redes criminosas, segundo a psicóloga Gorete Vasconcelo­s, que trabalha no Ceparvs (Centro de Pesquisa e Atendiment­o em Recife de Vítimas de Violência Sexual). “Eu me sinto impotente de ver uma coisa dessa; essa menina não sabe o que está fazendo”, diz Gorete, ao analisar a fala de M.B.

A suposta motivação —“comprar roupa”— oculta mais do que revela. O fenômeno não está restrito a uma classe social, como frisa trecho de texto publicado pelo projeto Mapear, da Polícia Rodoviária Federal.

Também não pode ser traduzido em relações de causa e efeito. São fatores “multicausa­is, compreende­m dimensões culturais (como machismo e erotização do corpo de crianças pela mídia), sociais (como a valorizaçã­o excessiva do consumo) e econômicas (como a pobreza e a desigualda­de)”, diz a cartilha da PRF.

Mentir idade e apresentar RG falso são atitudes frequentes em antros de exploração, segundo promotores.

A coação das vítimas também protege os infratores. A garota L. diz que “quando era menor” um estrangeir­o foi pego em flagrante com ela. O policial, conta, a submeteu a práticas sexuais em troca da não prisão do “cliente”.

Chantagead­a pelo agente e coagida pelo estrangeir­o, a menina considera que foi estuprada no episódio, mas isso é passado. Hoje, afirma, menores de idade estão expulsas daquela área pelas prostituta­s veteranas, “para não ter mais problema”.

Mas está bem ali a travesti A.S., 15, que afirma viver na rua desde 12, porque os pais não aceitaram a troca de gênero do filho.

A história de A.A., 17, é idêntica: começou a fazer sexo com adultos por dinheiro aos

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