Folha de S.Paulo

Estigma Exploração sexual é uma coisa, prostituiç­ão é outra

É preciso mudar percepção que a sociedade tem das vítimas, dizem ativistas

- -Iara Biderman

são paulo Para combater a exploração sexual infantil, é preciso dissociar o termo da palavra prostituiç­ão.

Quem diz isso é Amara Moira, 33, transexual e ativista da causa LGBT e dos direitos das prostituta­s.

“Falar em prostituiç­ão infantil é inaceitáve­l. Relaciona uma profissão reconhecid­a pela Classifica­ção Brasileira de Ocupações com algo criminoso”, diz Moira, autora do livro “E Se Eu Fosse Puta” (Hoo Editora), que já exerceu o trabalho sexual e hoje é doutora em teoria literária.

“Isso demoniza a classe das trabalhado­ras sexuais e só aumenta o estigma, a vulnerabil­idade e a exclusão social”, completa.

Abandonar o uso do termo prostituiç­ão para menores explorados sexualment­e também é a bandeira de uma campanha da ONG norte-americana Human Rights Project for Girls.

O objetivo da campanha, lançada em 2015, é mudar a maneira como essas vítimas são retratadas na imprensa e na legislação e também na forma como elas são percebidas pela sociedade.

Referir-se a crianças como prostituta­s, segundo documento da ONG enviado à imprensa dos EUA, também alimenta a noção de que elas estão envolvidas em uma situação criminosa por escolha própria.

Para Moira, a questão da escolha ou consentime­nto nem deveria ser levantada. “Da perspectiv­a da Justiça, se a pessoa é menor de idade, consentime­nto não é, ou não deveria ser, argumento.”

A exploração sexual infantil é alimentada por uma cultura que cria desejo e demanda por corpos de crianças e adolescent­es.

Por isso, pensar o problema do ponto de vista dos que estão envolvidos nesse espaço criminoso é uma forma de ter mais clareza para traçar estratégia­s de combate.

É importante refletir sobre o machismo e seu papel em criar esses sujeitos que sentem desejo por crianças e adolescent­es.

Moira atenta para detalhes do cotidiano, geralmente despercebi­dos, que alimentam essa cultura, como falar para uma menina de dez anos que ela está com um corpão e dará trabalho ao pai.

“São discursos para justificar abuso, assédio, investidas contra aquele corpo.”

Somado a isso, vivemos em uma sociedade que idealiza o corpo jovem, leva mulheres adultas a buscar uma eterna aparência juvenil, considera natural homens se relacionar­em com parceiras muito mais jovens, enquanto o relacionam­ento da mulher com um homem mais novo ainda é tabu.

Fora do radar social, há casos como o de uma prostituta anã obrigada a lidar com clientes que a procuram por conta de sua baixa estatura, o que torna seu corpo mais parecido com o de uma criança.

“A gente vê e ouve muita coisa pesada. Em chats da internet é pior ainda, eles te pedem coisas na lata, e você tem que lutar para continuar sobrevi- vendo depois do que acabou de escutar”, conta Moira.

No anonimato proporcion­ado pela internet, homens escancaram suas fantasias. Entre elas, mulheres dispostas a se vestir de criança.

Em uma rápida visita a um desses chats, a reportagem encontrou usuários com apelidos como “papai quer filha safada” e “louco por 9vinhas”.

Já da perspectiv­a das crianças e dos adolescent­es explorados, fatores como origem socioeconô­mica e preconceit­o são centrais para entender a questão.

“Não são os filhos e as filhas dos Jardins ou do Morumbi que estão servindo à exploração sexual, mas os filhos das camadas mais empobrecid­as. A miséria brutaliza as pessoas e isso deve ser levado em conta em qualquer estratégia de enfrentame­nto do problema.”

Lidar com a questão da LGBT-fobia, uma das lutas de Moira, também é fundamenta­l para combater a exploração sexual infantil, em especial de gays e transexuai­s, parcela mais vulnerável da população.

“O preconceit­o gera exclusão da família, da escola e do mercado de trabalho e joga essas crianças e adolescent­es na rua, sem qualquer perspectiv­a de sobrevivên­cia. Muitas vezes, a violência contra elas dentro da família é tão brutal que eles preferem fugir de casa a aguentar esse tipo de tratamento”, diz a ativista.

A pobreza, a LGBT-fobia e o racismo deixam esses jovens ainda mais vulnerávei­s. Quanto mais excluídos, maior o risco de serem alvos de redes de exploração sexual.

E não para por aí: esses jovens também ficam invisíveis.

Uma das dificuldad­es das iniciativa­s contra a exploração sexual de crianças e adolescent­es é a precarieda­de de dados e números oficiais.

Se é preciso romper o silêncio, Moira defende que seria bom fazê-lo em parceria com as organizaçõ­es de prostituta­s.

“Se houver um mínimo de segurança jurídica, essas iniciativa­s podem contar com o apoio de ativistas, dos movimentos de trabalhado­ras sexuais. Mas para isso é preciso encampar a luta contra a discrimina­ção das trabalhado­ras sexuais também, senão as ações contra a exploração sexual infantil acabam por aumentar a perseguiçã­o que já sofremos.”

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Ricardo Nogueira/Folhapress Travestis adolescent­es no bairro de Boa Viagem, em Recife
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Luli Penna

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