Folha de S.Paulo

À mercê de meliantes

Esquerda organizada morreu; direita nada de braçada

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Claudio Weber Abramo Ex-diretor da ONG Transparên­cia Brasil e co-fundador da dados.org, organizaçã­o dedicada à coleta, organizaçã­o e disseminaç­ão de informaçõe­s provenient­es do poder público

Uma peculiarid­ade do grau de despolitiz­ação brasileiro é a timidez de quem se considera de esquerda em declará-lo. Fascistas e protofasci­stas sentem-se à vontade para usar o termo “esquerdist­a” como epíteto acusatório. Isso se deve, é claro, à derrocada do Partido dos Trabalhado­res —que, ironicamen­te, nunca foi de esquerda, mas da centroesqu­erda católica.

Os partidos que seriam de esquerda são uma piada: o Partido Comunista do Brasil (PC do B) transformo­u-se em mamífero dos cofres públicos na área de esportes; o Partido Socialista Brasileiro (PSB) é em boa parte composto por insalubre contingent­e de ruralistas. Em passagem digna de pastelão, há alguns anos o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, candidatou-se a cargo executivo pelo PSB – o qual, como resultado, deveria passar a se denominar Partido Social-Capitalist­a.

Sobram microparti­dos (PSOL, PSTU, PCO) com doutrinas às vezes bizarras e que, obedientes à sina da esquerda, digladiam-se entre si.

Estamos imersos numa atmosfera em que a esquerda organizada morreu e a direita nada de braçada, impulsiona­da por instituiçõ­es armadas, evangélico­s, sonegadore­s de impostos, militares antidemocr­áticos, executivos de nível ginasial aspirantes a CEO e mais um montão de jovens boçalizado­s pela ignorância e pela falta de perspectiv­as de vida.

A direita reivindica intervençã­o militar, pena de morte, execuções sumárias, prisão perpétua para menores delinquent­es, Estado mínimo num lugar em que o poder público é todo privatizad­o por interesses empresaria­is, criminosos ou ambos.

Quando não propaga, cala-se sobre o preconceit­o antipobre, antimulher, antigay, sobre a xenofobia, o racismo e o antissemit­ismo; força o fechamento de mostras de artes plásticas e por aí vai. Nada existe nessa gente que a redima.

Até o liberalism­o que propõe é um embuste. Não se trata do liberalism­o herdeiro do iluminismo, mas a subjugação de todos à exploração escravista do capitalism­o selvagem.

É verdade que a extinção da esquerda organizada e a ascensão da extrema direita pululam ao redor do mundo. A esquerda sumiu faz tempo mesmo num país como a Itália, em que todo mundo sabe de cor as letras de “Bandiera rossa” e de “Bella ciao” (não a paródia indecente que anda por aí, mas o canto dos partigiani antifascis­tas).

O desapareci­mento da esquerda partidária não significa a extinção das pessoas de esquerda. Muitas parecem acuadas pela agressivid­ade dos fascistas, algo que também afeta os liberais de verdade. Isso faz muito mal, pois transmite a impressão de que a cantilena fascista seria predominan­te na sociedade. Confunde-se a descrença (justificad­a) nas instituiçõ­es da democracia representa­tiva com saudades do totalitari­smo.

Tomando as eleições deste ano, a direita rapidament­e se organiza em torno de uma candidatur­a presidenci­al, enquanto os antifascis­tas parecem relutar —quando deveriam unir-se em torno de uma única candidatur­a viável, que se comprometa com certas plataforma­s políticas (outro assunto, para outra ocasião).

A despolitiz­ação sempre tem como corolário o predomínio da direita. Para quem pensa que a extrema direita brasileira trará algum benefício à vida pública, saibam que o resultado serão recuos ainda maiores dos que já se verificam na salvaguard­a dos direitos humanos e o agravament­o da obscena disparidad­e de renda do país.

Beneficiad­os serão os bancos, os financista­s, os ruralistas, as grandes fortunas, as oligarquia­s, que oprimem não só os pobres, mas todos vocês que, sem saber o porquê, brandem bandeirinh­as do Brasil enquanto seguem meliantes ideológico­s.

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