Folha de S.Paulo

Desliga a tela e ouve

Prestes a vir ao país, Geoff Emerick, ex-engenheiro de som dos Beatles, diz que tecnologia atual estragou a música: ‘o Grammy é do cantor ou do computador?’

- Rafael Gregorio

Geoff Emerick não consegue ouvir o pop moderno sem se sentir enganado.

“Tudo parece igual”, reclama, “e não consigo distinguir se estou ouvindo um ser humano ou uma máquina”.

O britânico de 72 anos fala com propriedad­e: foi o engenheiro de som responsáve­l pelos discos mais revolucion­ários dos Beatles, como “Revolver” (1966) e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967).

Ele criou técnicas e ferramenta­s que viraram padrões em estúdios e na forma como se produz e se grava músicas.

“A maioria dos plug-ins são baseados em músicas dos Beatles”, orgulha-se Emerick, referindo-se aos efeitos —ecos, ambiências, distorções— disponívei­s em softwares de gravações, como ProToolseL­ogic.

Desde 1981 vivendo em Los Angeles, nos Estados Unidos, o inglês foi pioneiro em adaptar alto-falantes para servirem de microfones, por exemplo.

Também foram dele as ideias de gravar baterias com mais de dois microfones e de retirar a pele frontal do bumbo (a peça mais grave do instrument­o) para preenchê-lo com panos e obter um som mais pungente, hoje um padrão.

Gravadoras não viam tais invencioni­ces com bons olhos. “Ele fazia coisas bizarras que depois escondíamo­s da chefia; não pegava bem desrespeit­ar os manuais”, disse o produtor dos Beatles, George Martin (1926-2016), no documentár­io “The Beatles Anthology”.

Mas foram os truques que lhe renderam a confiança da banda. “John Lennon um dia veio todo faceiro: ‘Quero que minha voz soe como o Dalai Lama berrando sobre a mais alta montanha do mundo’”.

Naquele momento, diz ter se lembrado do alto-falante rotatório dos órgãos Hammond.

Desparafus­a daqui, puxa fio dali, altera o circuito do componente eletrônico e... Lá está a experiment­al canção “Tomorrow Never Knows”.

Considerad­o uma lenda entre engenheiro­s de som, o britânico vai explicar essas e outras gambiarras em aulas e palestras em Porto Alegre (RS), de quinta (14) a domingo (17).

Sua narrativa deve partir do início da carreira na EMI, aos 15 anos, quando passava os dias fazendo backups das fitas.

Aos 19, foi alçado a engenheiro-chefe de som dos Beatles. O grupo preparava o álbum “Revolver”, que aprofundou a mudança do iê-iê-iê para a vanguarda sonora que culminou em “Sgt. Pepper’s”.

Com a banda, gravou mais cinco discos antes da separação, em 1970. Depois disso, trabalhou com artistas como Elvis Costello e Jeff Beck e tomou partido na célebre disputa entre os compositor­es: “Paul era o mais profission­al, queria sempre a perfeição”.

Essa predileção foi alvo de críticas quando lançou “Here, There And Everywhere: My Life Recording The Music Of The Beatles” (2006), livro de memórias em coautoria com o jornalista Howard Massey.

A obra também revoltou fãs por falar mal dos discos “Rubber Soul” (1965) e “The Beatles” (1968), que classifico­u como “impossível de ouvir”.

Desprezar álbuns hoje considerad­os o estado da arte não é a única contradiçã­o de Emerick, que toca piano para relaxar, mas, mesmo sendo um papa dos estúdios, não registra suas composiçõe­s.

E ele, que influencio­u a forma como se faz música, hoje critica o uso da tecnologia, que ajusta até a afinação de um cantor ao vivo.

Como resultado, diz, “você liga o rádio e tudo soa igual; a expressão artística morreu”.

Daí a lição que pretende transmitir às novas gerações de técnicos: desliguem as telas e escutem as músicas.

“Quando Lennon cantava, eu sabia o que estava ouvindo; agora, o Grammy de melhor performanc­e vai para o cantor ou para o computador?”

Geoff Emerick

Palestra: qui. (14), das 18h às 22h, na Casa da Música (av. Borges de Medeiros, 1.501, Porto Alegre). Master class: sex. (15), sáb. (16) e dom. (17), das 10h às 18h, no Audio Porto (r. Câncio Gomes, 609, Porto Alegre). Ingr.: R$ 80 a R$ 200 (palestra) e R$ 1.750 a R$ 3.600 (master class), no site sympla.com.br.

John Lennon um dia veio todo faceiro: ‘Quero que minha voz soe como o Dalai Lama berrando sobre a montanha; consigo isso, Geoff?’ Geoff Emerick, ex-engenheiro de som dos Beatles

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Divulgação O engenheiro de som em seu estúdio, em Los Angeles, nos EUA
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Leslie Bryce/Meet The Beatles for Real Emerick e Paul nos anos 70

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