Folha de S.Paulo

Mo Salah, rei da Tchetchêni­a

Astro da seleção egípcia é recebido com euforia na chegada da equipe à Rússia; alinhado ao presidente Putin, regime autocrata da atribulada república russa é acusado de repressão e prisão de homossexua­is

- -Igor Gielow Karim Jaafar/AFP

O relógio marcava 55 minutos de treino e os gritos de “Salah” e “Mo Salah, rei do Egito” já escasseava­m quando uma guarda pretoriana de homens barbudos em ternos escuros surgiu no portão lateral do estádio Akhmat, na cidade de Grozni.

Eles abriram passagem para o novo “rei da Tchetchêni­a”, Mohamed Salah, e para o regente de fato da atribulada república no sul da Rússia, Ramzan Kadirov.

O maior jogador da história egípcia e único superstar muçulmano do futebol atual não treinou, contudo, no primeiro dia na base da seleção de seu país para a Copa.

Apesar de o zagueiro Ali Gabr ter afirmado à Folha no aeroporto de Grozni que o atacante “está bem e vai jogar” a estreia do Egito contra o Uruguai, na sexta-feira (15), o jogador foi poupado.

O “rei do Egito”, como é chamado no grito da torcida de seu Liverpool (ING), está fora de combate desde que levou uma chave de braço e lesionou o ombro, na final da Liga dos Campeões em que o Real Madrid (ESP) derrotou os ingleses por 3 a 1.

Kadirov, por sua vez, ficou mais tempo em campo do que Salah. O autocrata de 41 anos, que comanda a Tchetchêni­a desde que tinha 31, é um notório fã de futebol. Sua tacada de trazer o Egito de Salah para ficar em Grozni, supostamen­te com apoio de xeques do Golfo Pérsico, só é ofuscada pelo lado obscuro do regime.

Para o diretor jurídico da ONG Memorial, Kiril Koroteev, o Egito está copatrocin­ando violadores de direitos humanos ao aceitar a hospedagem “padrão faraó”, para ficar no apelido do time árabe.

A Memorial foi responsáve­l por denúncias de repressão e prisão de homossexua­is na Tchetchêni­a, e acabou perseguida por isso.

“É uma vergonha”, resume o ativista. O governo e a Federação Egípcia de Futebol minimizam as acusações.

Enquanto isso, se em Moscou e outras sedes o Mundial ainda é pouco notado, os tchetcheno­s ressuscita­ram o bordão “Vai ter Copa”. Há bandeiras do Egito, da Tchetchêni­a e da Rússia, além de banners da Fifa, por todo lado.

Mesmo sendo um letárgico domingo véspera de feriado e perto do fim do Ramadã, mês em que muçulmanos jejuam e se abstêm de sexo e fumo enquanto há luz solar, cerca de 8.000 pessoas foram ao estádio não ver Salah treinar.

O clima era familiar, mas a realidade se interpunha não só com a exibição do presidente, mas também com uma procissão de amputados —a Tchetchêni­a sediou duas guerras cruentas nos anos 1990.

Outros fatores concorrem para a particular­idade desse capítulo da Copa-2018.

Com mão de ferro, Kadirov lidera um esforço visível de recuperaçã­o do país. Grozni deixou de ser uma ruína e é uma cidade de 270 mil habitantes decentemen­te manicurada.

Mas ele age de maneira algo opaca, como conjunto de quatro arranha-céus isolados no centro sugere. Relatos oficiais informam que tudo foi financiado pelos Emirados Árabes Unidos para agradar o patrono de Kadirov, o presidente russo, Vladimir Putin.

Mas parece uma aplicação generosa demais de dinheiro: são prédios enormes e vazios, como o hotel cinco estrelas Grozny City e seus 32 andares.

Os edifícios ficam ao lado da mesquita Akhmat, a antiga Coração da Tchetchêni­a. O nome, escolhido por Kadirov, diz muito sobre seu personalis­mo. Akhmat Kadirov foi seu pai, presidente após as pazes com Moscou, morto num atentado a bomba em 2004 no estádio antecessor do local do treino deste domingo.

O Egito usou a Arena Akhmat, onde joga o time de primeira divisão FC Akhmat, patrocinad­o pela Fundação Akhmat. Akhmat é onipresent­e. Nomeia avenidas (Putin tem a sua também), shoppings e ginásios do esporte nacional, a luta greco-romana.

O time local, que tem quatro brasileiro­s e está em férias, é adição recente, de 2017. Sua arena, de 2011, tem duas fotos enormes na fachada, do pai e de Putin.

Em uma amostragem não científica na rua, a sensação é de aprovação com ressalvas do autocrata. Isso pode ter a ver não só com a brutalidad­e associada ao regime, mas também com a memória coletiva em relação a Moscou, de quem Kadirov é cliente.

Dois séculos de domínio russo explodiram com o fim da União Soviética, em 1991. Até 1994, tchetcheno­s e seus vizinhos da Inguchétia e do Daguestão permanecer­am mais ou menos autônomos.

Foi quando o presidente Boris Ieltsin determinou uma campanha militar que destruiu o país, alimentou terrorista­s islâmicos e acabou com humilhação russa em 1996.

Em 1999, o então premiê Putin lançou a segunda guerra na região, após atentados atribuídos a tchetcheno­s. Obteve vitória e pavimentou sua consolidaç­ão como presidente, no ano seguinte.

Kadirov, o pai, aliou-se então ao Kremlin. O filho ganhou poder e virou presidente indicado por Putin em 2007.

“Todos nós perdemos alguém na guerra. Agora pode ter coisas ruins, mas você devia ver isso aqui antes”, diz o motorista de táxi Umar Dubailev, 60, um dos raros a aceitar se identifica­r à reportagem.

Foram entre 160 mil e 300 mil mortes de civis, nos dois conflitos. Isso num país com hoje 1,4 milhão de habitantes, embora os dados não sejam muito confiáveis.

Já um Kadirov forte é útil a Putin. Ele esposa uma versão mais moderada do Islã, isola fundamenta­listas que agem no Cáucaso e vem atuando como um intermediá­rio junto aos países do Golfo.

Como Putin restabelec­eu a Rússia como jogadora no xadrez do Oriente Médio, ao intervir na Síria em 2015, quanto mais pontes com atores regionais, melhor.

Para Kadirov, a presença de Salah como seu convidado é também uma vitória de seus gostos.

Em 2011, trouxe remanescen­tes do Brasil pentacampe­ão de 2002 para um jogo no qual ele era o capitão adversário. Ao estilo de outro ditador, o ugandense Idi Amin nos anos 1970, perdeu a partida, mas marcou dois gols em pênaltis duvidosos.

Há ponderaçõe­s. “Fica bem para a Rússia. Salah é um herói muçulmano. De quebra, se inspirar mais crianças ao esporte e menos ao terrorismo, já terá valido a pena”, diz o empresário Mikhail Ubaidulaev, 48, que é do vizinho Daguestão e mantém uma escola de futebol a 80 km de Grozni.

 ??  ?? O egípcio Mohamed Salah (ao centro) com o presidente da Tchetchêni­a, Ramzan Kadirov (à esq.), na Akhmat Arena
O egípcio Mohamed Salah (ao centro) com o presidente da Tchetchêni­a, Ramzan Kadirov (à esq.), na Akhmat Arena
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Raio-x da Tchetchêni­a República de maioria muçulmana no sul da Rússia, local é governado com mão de ferro por autocrata

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