Falhas emperram apuração de chacina no Rio
Morte de 8 no Salgueiro ocorreu em área com policiais e militares do Exército; perícia não foi feita em possível área de tiros
Ainvestigação sobre a morte de oito pessoas a tiros no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), em novembro de 2017 sofre com falhas que afetam e retardam uma conclusão.
A região de mata de onde partiram os tiros, segundo o depoimento dos sobreviventes, nunca passou por perícia e, assim, não foram localizadas cápsulas de bala. O local dos corpos não foi preservado antes da chegada da perícia.
A polícia também não sabe explicar quais vítimas estavam ou não armadas, e com que armas, no momento em que teriam sido apreendidos sete pistolas e um fuzil.
Passados sete meses, o massacre continua sem solução à vista, embora seja investigado em três frentes: um inquérito na Polícia Civil e dois procedimentos investigatórios, um no Ministério Público do Rio e outro no Militar.
“Tem essas várias possibilidades. Pode ter sido alguém das Forças Armadas? Pode. Pode ter sido alguém da Polícia Civil? Pode. Polícia Militar? Pode. Facção de bandido? Pode. Milícia? Pode. Misturado? Pode. Pode uma porção de coisa. Até agora... Vai que surge alguma situação nova?”, diz o procurador-geral de Justiça Militar, Jaime de Cassio Miranda, descrente sobre uma solução rápida do caso.
A chacina ocorreu em 11 de novembro. Dois sobreviventes narraram que trafegavam por volta da 1h pela estrada das Palmeiras, no Complexo do Salgueiro, quando começaram os tiros. Ao final do tiroteio, sete corpos estavam espalhados ao longo de um quilômetro. Eram homens de 18 a 42 anos de idade. Um oitavo ferido, o mototaxista Luiz Octavio Rosa dos Santos, 27, morreu dias depois devido aos ferimentos.
No exato instante da chacina, três blindados, dos quais dois com militares do Batalhão de Forças Especiais do Exército de Goiânia (GO) e um com policiais da Core (unidade especial da Polícia Civil do Rio), subiam a mesma estrada em uma missão depois descrita como “de reconhecimento”.
Os policiais e militares disseram em depoimento que ouviram o barulho de disparos, saíram dos blindados e já encontraram os corpos ao chão. Não acionaram suas armas e não sabem quem atirou.
A suspeita de que eles, no mínimo, podem ter mais informações sobre a autoria avançou dias após a chacina. Santos, o mototaxista, ainda no hospital assinou um termo de depoimento aos cuidados do Ministério Público do Rio.
“O declarante viu luz vermelha e fogo saindo das armas de quem atirava da mata. Viu uns quatro ou cinco pontos de infravermelho”, afirmou Santos, atingido nas costas, socorrido por familiares, mas que morreu em 29 de novembro.
Outro sobrevivente, atingido nas mãos e em uma das coxas, disse que após os tiros os blindados se aproximaram. Os atiradores ainda estavam ao lado da estrada, “em pé e à vista”, mas não foram molestados pelos policiais e militares.
Santos não foi o único a ressaltar os equipamentos dos atiradores. Outras duas testemunhas confirmaram ter visto armas com miras a laser. Os assassinos também usavam roupas pretas, capacetes, lanternas e o rosto coberto. As testemunhas não relataram tiros da estrada em direção à mata, só no sentido contrário. “Não houve troca de tiros com ninguém”, afirmou Santos.
Embora os sobreviventes apontassem para a mata, não houve perícia na região.
O defensor público do Rio Daniel Lozoya, que representa famílias de vítimas, disse que a coleta das cápsulas “permitiria identificar o lote e a origem da munição ”. Ele rechaçou aversão d equeu ma facção rivalà que controla o Salgueiro estaria escondida e teria feito os disparos .“Então teria sido uma tremenda coincidência: duas facções criminosas, o Exército e a polícia na mesma favela.”
Em outro ponto que suscita dúvida, o delegado da Core Rodrigo Teixeira Oliveira, coordenador da operação, negou em depoimento qualquer disparo de policiais e militares, mas disse que “em todas as oportunidades em que a Core esteve presente no Complexo do Salgueiro houve forte resistência armada por parte dos criminosos”. Assim, a única exceção teria sido aquela madrugada.
Horas depois da chacina, a perícia da Polícia Civil do Rio chegou ao local. Porém o cenário “não se encontrava preservado nem acautelado [cercado]”, como registrou o perito em documento. Ele concluiu serem “verossímeis os relatos de moradores” sobre disparos oriundos da mata.
O perito não soube dizer se algum dos mortos estava armado no momento dos tiros porque todas as armas já haviam sido arrecadadas e apresentadas por policiais da Core.
Questionado pela Folha sobre o motivo pelo qual outra perícia não foi feita na mata, o Ministério Público do Rio apresentou três razões: amata“édedifíc ila cesso e grande extensão”, o primeiro exame de local, feito pela Polícia Civil na madrugada do crime, “se deu ainda em horário noturno e com as vítimas sobreviventes hospitalizadas” e, por fim, falta de segurança.
“O Complexo do Salgueiro é uma área reconhecidamente conflagrada. Realizar uma reconstituição ou uma perícia na mata demandaria grande mobilização de recursos com possíveis confrontos e, até mesmo, dando causa a mais vitimização de pessoas”, disse, em nota, o promotor Paulo Roberto Mello Cunha Jr.
“Não foram traficantes que atiraram. Foram homens vestidos de preto, que usavam capacetes com lanternas e armas com mira laser. Eu vi os feixes de luz vindos da mata”, afirmou à Folha um dos so- breviventes, sob anonimato.
Ele se move com dificuldade, aos saltos, e faz fisioterapia para tentar recuperar o movimento da perna. “Foram dois minutos de tiros. Fui atingido e caí da moto. Não conseguia levantar e fui me arrastando até um valão próximo”, relembra.
Um parente de Márcio Melanes, um dos mortos na chacina, relembrou o clima de tensão. “A gente saiu do carro e o corpo dele estava a poucos metros. Mas logo um policial veio e disse que a gente não podia se aproximar, xingando e gritando: ‘Quem chegar perto vai se juntar e ficar estirado no chão junto com eles!’.”
Ele reclamou de desdém no tratamento com as vítimas. Melanes completaria 21 anos em abril. Segundo esse familiar, ele não tinha ligação com o tráfico, estava desempregado e vivia de bicos.