Folha de S.Paulo

Palavras que valem um tiro

Bala de borracha cegou meu olho esquerdo há 5 anos

- Sérgio Silva

Há exatos cinco anos, esta Folha amanheceu com o editorial “Retomar a Paulista”, em que pintou os manifestan­tes que pediam redução da tarifa de ônibus, trem e metrô em São Paulo como vândalos, e decretou: “É hora de pôr um ponto final nisso”.

O Estado de S. Paulo expressou opinião semelhante com o texto “Chegou a hora do basta”, em que pedia: “Espera-se que [...] a PM aja com o máximo rigor para conter a fúria dos manifestan­tes, antes que ela tome conta da cidade”.

O apoio explícito da grande mídia legitimari­a a brutalidad­e da PM algumas horas depois.

Como resultado, centenas de pessoas —manifestan­tes, transeunte­s e jornalista­s— foram feridas e presas. Eu tomei um tiro de bala de borracha no olho esquerdo.

Meu nome é Sérgio Silva. Tenho 37 anos. Nasci e cresci na periferia de São Paulo. Desde 2011, sou fotógrafo profission­al. Sou, não deixei de ser, mesmo depois de ter perdido um dos órgãos que me permitiam enxergar perfeitame­nte.

Minha mutilação não se deve a uma mera fatalidade. Fui atingido por uma das 506 balas de borracha que a PM reconhece haver disparado naquela noite.

Era uma manifestaç­ão contundent­e, porém pacífica, como reconheceu o coronel Ben Hur Junqueira Neto segundos antes de seus comandados lançarem a primeira bomba. O que se assistiu depois está muito bem documentad­o.

As imagens que produzi naquela noite —as últimas fotos que tirei quando ainda tinha dois olhos— demonstram que eu estava me protegendo do ataque policial. Ainda assim, um soldado que atirava na cabeça das pessoas conseguiu explodir minha visão.

Diferentem­ente do que ocorreu com outras vítimas da PM naquele e em outros protestos, não existem imagens minhas logo após ter sido alvejado. Tampouco pensei em fazer um autorretra­to na rua, enquanto meu olho sangrava e eu sentia uma dor indizível. Ainda assim, há indícios de sobra para apontar a responsabi­lidade da PM.

Apesar disso, a Justiça negou em primeira e segunda instâncias meu pedido de indenizaçã­o. Em 2016, o juiz Olavo Zampol Júnior escreveu que a culpa foi minha, só minha, já que me coloquei voluntaria­mente na “linha de tiro”.

Em 2017, os desembarga­dores Rebouças de Carvalho, Décio Notarangel­i e Oswaldo Palu reconhecer­am minha mutilação, mas disseram que não há nenhum indício de que foi uma bala de borracha disparada pela PM que me cegou: pode ter sido qualquer coisa, qualquer pessoa, alegaram.

Eu repito: não existe nenhuma possibilid­ade de eu ter sido atingido por nada além de uma bala de borracha, nem por ninguém que não fosse um policial militar. Basta querer ver.

A Justiça não é cega. O juiz e os desembarga­dores estavam com os olhos bem abertos quando julgaram meu caso.

Eles usaram a anacrônica presença de black blocs, tão demonizado­s ao longo de 2013 e 2014, mas não em junho, para justificar a truculênci­a policial; e citaram como exemplo de civilidade as manifestaç­ões verde-amarelas, realizadas aos domingos de 2015 e 2016, com cobertura ao vivo na Globo.

Sou um profission­al de imprensa. Estava cobrindo o protesto de 13 de junho de 2013 como freelancer para a agência Futura Press.

Perdi um olho em um ato absurdo de violência, que continua se manifestan­do em minha vida, agora em papel timbrado. Tive uma série de direitos violados. E não posso querer nada além de justiça.

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