Folha de S.Paulo

‘Tony’ Bourdain era simples e excêntrico, assim como os pratos que descobria

- Rosa Moraes É diretora de gastronomi­a da Laureate Brasil

“Life does not suck” foi o que Anthony Bourdain me disse em uma de suas visitas ao Brasil. Ele tinha razão e concordei brindando com uma caipirinha, um dos drinques brasileiro­s que ele mais apreciava.

Para mim, a comemoraçã­o era dupla porque reunia também a satisfação de ter cumprido outra missão: reverter a impressão que ele tinha de São Paulo. Polêmico por natureza, no passado ele considerav­a a cidade feia —pelo estresse, lotação e agitação.

Não contava, porém, com o carisma das pessoas, os intensos sabores, os aromas inconfundí­veis e os costumes daqui.

Já sabia de sua sinceridad­e ímpar quando o conheci na noite de autógrafos do livro “Em Busca do Prato Perfeito”, em setembro de 2001, em Nova York. Sem filtros ou cerimônias, não hesitou em ressaltar sua opinião ao recusar meu convite para vir para cá.

Após dois anos de conversas, enfim ele cedeu. Enquanto descíamos a Serra do Mar em direção à Barra do Sahy, foi baixando a guarda.

Quando chegamos à praia, imediatame­nte ele pegou uma tesoura, cortou a calça jeans e mergulhou nas ondas. Assim nos tornamos amigos.

Apesar de já ter provado sua comida no restaurant­e Brasserie Les Halles, em Nova York, foi em um jantar na casa da minha sobrinha, em 2003, que tivemos a oportunida­de de cozinhar juntos.

Após um pulo no Ceasa, Tony preparou um grelhado de foie gras com cherimoia, fruta que, segundo a lenda, era oferecida aos deuses pelos incas.

Uma combinação simples e excêntrica, como a personalid­ade única de Tony. Amante de pratos despretens­iosos e viciado em descoberta­s, conquistou milhares de fãs pela espontanei­dade, ausência de preconceit­os e extravagân­cias gastronômi­cas.

Ele era exatamente como víamos nas câmeras: um homem de extremos, grande coração, que trazia sua verdade com nuances irônicas.

Circulava em todas as esferas, fazia refeições na rua, em espaços requintado­s ou sentado no chão. Ao conversar, sempre mantinha o olhar profundo, com total atenção. Definitiva­mente, gostava de estar rodeado de gente e provava de tudo, sem frescuras.

Coincident­emente, dias atrás me deparei com um email seu de 2016, quando veio para Belo Horizonte e não pudemos nos encontrar para dividir uma feijoada.

Não havia espaço na agenda corrida. “Unfortunat­ely no time to play”. A vida definitiva­mente não é ruim, mas certamente não é um mar de rosas.

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