Folha de S.Paulo

Trump e seu amigo Kim Sobre acerto duvidoso entre EUA e Coreia do Norte.

Em encontro histórico, presidente americano não obtém do ditador da Coreia do Norte muito mais que um compromiss­o vago de desnuclear­ização

- Editoriais@grupofolha.com.br

A confiança nas próprias habilidade­s, sem dar ouvidos a conselhos ou ressalvas em seu entorno, constitui aspecto central da personalid­ade de Donald Trump. Tal convicção alcançou o paroxismo no tão aguardado encontro com o ditador norte-coreano, Kim Jong-un.

Decerto, o inédito aperto de mãos entre o comandante da maior potência mundial e o líder do mais recluso regime detentor de armas atômicas terá lugar na posteridad­e. Entretanto o caminho que Trump escolheu para tentar convencer a Coreia do Norte a abdicar de seu arsenal corre grave risco de se provar inviável no decorrer do tempo.

Ao apostar no autopropal­ado tino de negociador, o presidente pôs na mesa a oferta de interrompe­r os exercícios militares com a Coreia do Sul, sem aviso prévio à nação aliada —aliás, entreveros com parceiros históricos dos EUA têm se tornado marca deste governo, como a recente recusa em endossar a declaração da reunião do G7.

Trata-se de uma concessão que, se confirmada, agradará sobremanei­ra a Kim, para quem os treinament­os representa­vam uma ameaça à soberania.

Em contrapart­ida, até o momento, a Casa Branca tem apenas um vago comunicado conjunto em que Pyongyang reafirma seu compromiss­o de desnuclear­ização.

Não se fixaram, ademais, metas nem prazos para o processo, sem o qual nenhum acordo faz sentido. O único recurso dos EUA para pressionar os norte-coreanos será a manutenção das sanções econômicas enquanto não houver medidas concretas de desarmamen­to.

Trump diz ter construído um “elo muito especial” com o ditador e parece crer nisso para não reproduzir o fracasso de governos americanos anteriores em negociaçõe­s com o regime comunista. Cumpre recordar que, nessas ocasiões, o rompimento do diálogo se deu por parte da Coreia do Norte, que só fez ampliar seus testes nucleares.

De “pequeno homem do foguete”, que estaria sujeito a “fogo e fúria” caso mantivesse suas ameaças, Kim Jong-un passou a ser, na visão do líder republican­o após a reunião em Singapura, um homem “muito talentoso”, que ama seu país.

Tamanha mudança de opinião em poucos meses pode ser atribuída a uma estratégia de ganhar a confiança do rival em prol de um pacto que traria estabilida­de e paz aos parceiros dos EUA na região.

No entanto, dados o temperamen­to errático de Trump e a pouca confiabili­dade norte-coreana, as mesuras a Kim, por ora, só têm o efeito de conferir legitimida­de a um Estado-pária, que impõe a seu povo uma repressão brutal e as mais básicas privações.

De qualquer maneira, convém esperar os próximos desdobrame­ntos. É natural que um esforço diplomátic­o dessa monta precise de meses, talvez anos, para vingar.

Afigura-se perigoso, porém, cortejar um interlocut­or de pouco crédito sem garantias. A suposta nova amizade iniciada em Singapura terá, em algum momento, de superar a descrença do mundo.

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