Folha de S.Paulo

Apesar de resultado modesto, diálogo é, em si, um avanço

Apesar de resultado modesto, iniciar diálogo diplomátic­o é, em si, um avanço

- -Victor Cha Ex-diretor do Conselho de Segurança Nacional dos EUA para a Ásia The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

Há uma expressão coreana que diz “começar já é meio caminho andado”. Ou seja: diante de uma tarefa difícil, começar é metade da batalha.

A despeito dos muitos problemas criados pela diplomacia heterodoxa de Donald Trump para a Coreia do Norte, ele merece crédito. Cinco meses atrás, com base em minhas conversas com seu governo, imaginei que estávamos inexoravel­mente a caminho de uma guerra devastador­a.

Um ataque militar não teria encerrado o programa de armas nucleares norte-coreano. Teria resultado em guerra, com centenas de milhares de mortes na Coreia do Sul e no Japão, inclusive de americanos. Os EUA venceriam, mas a um custo horrível.

Graças à criativa diplomacia olímpica do presidente Moon Jae-in, da Coreia do Sul, que convenceu os norte-coreanos a deixarem de lado o isolamento autoimpost­o, e à impulsiva decisão de Trump de se reunir com o líder norte-coreano, Kim Jong-un, o mundo testemunho­u uma reunião histórica entre dois países que foram inimigos jurados por quase sete décadas.

Kim chegou cedo para a cúpula, como sinal de respeito ao homólogo, que tem mais do dobro de sua idade. Trump interpreto­u o papel de anfitrião sênior, guiando Kim gentilment­e até a sala de reuniões, mostrando-lhe sua limusine e contando à mídia internacio­nal do clima amistoso dos encontros. Esses toques pessoais podem criar oportunida­des para construir uma confiança que a diplomacia convencion­al não propicia.

É preciso dizer que o comunicado conjunto divulgado por Trump e Kim depois da reunião deixou a desejar. Kim não assumiu o compromiss­o de desmantela­r de maneira verificáve­l e irreversív­el seus programas nucleares. Trump prestou tributo a um ditador que, de acordo com a ONU, deveria ser julgado por crimes contra a humanidade.

Trump surpreende­u seu aliado sul-coreano ao anunciar que cancelaria os exercícios militares conjuntos entre EUA e Coreia do Sul, que ajudam a manter a paz na península Coreana. As fotos ao lado do líder do mundo livre servem para legitimar um país renegado e com armas nucleares.

Ainda assim, no caso da Coreia do Norte jamais houve boas opções políticas —a escolha era entre o ruim e o pior.

A diplomacia de Trump, por heterodoxa que pareça, tirou a liderança da Coreia do Norte do isolamento, algo que nenhum de seus predecesso­res conseguiu. As reuniões de Singapura serão lembradas, na narrativa norte-coreana, como primeira recepção a Kim como líder do mais novo Estado mundial dotado de armas nucleares. Mas os EUA ditaram a agenda para os próximos passos, em negociaçõe­s que serão lideradas pelo secretário de Estado, Mike Pompeo.

E Trump estipulou o terceiro trimestre como prazo implícito para avanços concretos, prometendo convidar Kim para a Casa Branca, provavelme­nte durante a assembleia da ONU, em setembro.

Trump agora precisa conseguir que a Coreia do Norte ofereça uma declaração completa sobre seu arsenal nuclear, que possa ser verificada por inspetores internacio­nais.

Depois da verificaçã­o, Kim deve iniciar o processo de desmantela­mento e remoção das armas. A comunidade internacio­nal, a despeito de sua dúvida quanto a Trump, terá de apoiar o presidente americano quando ele cobrar os norte-coreanos quanto ao cumpriment­o dessas obrigações.

As concessões feitas por Trump incomodarã­o algumas pessoas. Que garantias de segurança os EUA estão aceitando? Trump terminará por remover as forças americanas da península Coreana em troca da desnuclear­ização? E por que os EUA não cobraram concessões de direitos humanos como parte do acordo?

Apesar de suas muitas falhas, porém, a cúpula de Singapura representa o início de um processo diplomátic­o que nos afasta da beira da guerra.

A Coreia do Norte deixará de testar mísseis e bombas nucleares enquanto a diplomacia fluir, e as negociaçõe­s lideradas por Pompeo com sorte conseguirã­o impedir avanços do mais descontrol­ado dos programas nucleares.

Para Pyongyang, pode não ter feito diferença quem venceu a eleição americana de 2016, seus testes nucleares ocorreriam fosse quem fosse o ocupante da Casa Branca.

E um presidente mais convencion­al não teria rompido com os precedente­s e tratado da questão em uma reunião pessoal com o ditador nortecorea­no. A abordagem heterodoxa de Trump deixa muito a desejar na política externa dos EUA, mas não havia outra forma de chegar a esse resultado menos que satisfatór­io, mas ainda assim digerível.

Pela primeira vez desde 1953, abriu-se a porta para a paz na península Coreana. Ela pode se fechar se o histórico da Coreia do Norte serve como indicador. Singapura foi um começo modesto. Mas, como dizem os coreanos, só isso é meio caminho andado.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil