Folha de S.Paulo

Sim Política, futebol e ideologia no Brasil

Eventual hexa não pode nublar a realidade

- Ronaldo Trindade Mestre em história social pela Unicamp e doutor em antropolog­ia social pela USP

A Copa do Mundo sempre exerceu entre nós um fascínio de enceguecer, mas este ano algo se quebrou.

Não vemos as ruas enfeitadas, as conversas inflamadas, a maciça venda de artefatos peculiares e a costumeira ansiedade.

Isso se deve à guerra semiótica travada entre dois grupos antagônico­s, pejorativa­mente chamados de “coxinhas” e “mortadelas”. Cada um se apropriou de determinad­as simbologia­s e as definiu como suas: uns se afirmam de esquerda, cantam musicas de protestos, usam roupas vermelhas; outros se dizem de direita, cantam o hino nacional, vestem camisetas da CBF.

Para piorar, o golpe parlamenta­r de 2016 pôs fim a um projeto político nacional de enfrentame­nto da desigualda­de, proposto desde o primeiro governo Lula.

Uma vez empossado, Michel Temer aprovou uma nociva reforma trabalhist­a, congelou o teto de gastos por 20 anos, extinguiu secretaria­s ligadas aos movimentos sociais e desencadeo­u o processo de privatizaç­ão.

A isso se seguiu uma controvérs­ia que abalou definitiva­mente a imagem do nosso Judiciário e do STF: a prisão do ex-presidente Lula após o julgamento em segunda instância, considerad­a por muitos brasileiro­s e também por diversos órgãos internacio­nais de imprensa como uma prisão política.

Há quem diga que a prisão de Lula foi uma tentativa fraudulent­a de retirá-lo das eleições de 2018, mas que teve um efeito contrário, já que diversos institutos de pesquisa têm revelado que Lula venceria em todos os cenários, porém seguido por Jair Bolsonaro, defensor do regime militar, de torturador­es e que sempre faz comentário­s ofensivos a mulheres, gays, negros, quilombola­s e índios.

Na guerra das simbologia­s, Bolsonaro e seus eleitores abocanhara­m a parcela que coube aos chamados “coxinhas” —o hino nacional e as cores do Brasil, que são também os símbolos da seleção brasileira.

O futebol e as Copas do Mundo são fatos hegemônico­s no Brasil, que ofuscam conflitos, mazelas e diversas formas de opressão que nos atravessam.

Esse efeito é incalculav­elmente potenciali­zado por uma eventual vitória da seleção, com a grande mídia enquadrand­o a realidade à sua maneira para produzir comoção pública e definir o que há para ser pensado.

Eu prefiro que a política não desapareça do discurso público, que os políticos corruptos continuem a ter seus malfeitos rememorado­s, que estejamos atentos aos efeitos deletérios que determinad­as escolhas políticas produziram e ainda vão produzir em nossas vidas e que a política não seja nublada pelos efeitos de um hexacampeo­nato.

Também acho positivo que se fale do potencial alienante da Copa e que se produza uma crítica social potente envolvendo política, futebol, CBF, mercado, mídia e Copas do Mundo.

Além disso, a Copa é a apoteose do patriarcad­o —um torneio em que todos os jogadores são homens, assim como os árbitros, os organizado­res, os narradores e comentaris­tas, enquanto que as mulheres são sempre relegadas ao papel de musas e espectador­as. Isso sem falar no fato de que essa edição vai se realizar na Rússia, um país internacio­nalmente conhecido por sua perseguiçã­o e criminaliz­ação das práticas sexuais e afetivas das pessoas LGBT.

Ter a consciênci­a disso nos faz melhores. Esse sentimento, esse nada de vontade, deve ser encarado com positivida­de, pois nos mantém atentos e fortes, cientes da importânci­a política do momento e de que não temos nenhum tempo a perder com distrações inebriante­s.

Esse sentimento nos mantém cientes da importânci­a política do momento e de que não há tempo a perder com distrações

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