Folha de S.Paulo

A Constituiç­ão de 88

Apesar de defeitos, exageros e do desprezo crônico, a Carta sobrevive

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos lfcarvalho­filho@uol.com.br

Além da Copa do Mundo, é tempo de celebrar os 30 anos da Constituiç­ão do Brasil —o coroamento do cauteloso processo de transição da ditadura para a democracia.

Ambígua, mais programáti­ca do que eficaz, marcada pela generosida­de em direitos e garantias, pelo irrealismo fiscal, pelo corporativ­ismo e pela xenofobia, o texto se modificou ao longo do tempo. Sem contar a revisão de 1994, são 99 emendas constituci­onais.

Só no período FHC (19952002) o Congresso aprovou 35 emendas, entre elas a que instituiu em seu benefício a reeleição (o que minaria sua credibilid­ade política) e as que remodelara­m o regramento econômico.

Jazidas, recursos naturais e potenciais de energia elétrica mudam de mãos: da “empresa brasileira de capital nacional” para “empresa constituíd­a sob as leis brasileira­s” com gerência e sede no país. Embarcaçõe­s estrangeir­as são autorizada­s a “transporte de mercadoria na cabotagem” e “navegação interior”. As telecomuni­cações são privatizad­as. A União passa a contratar empresas para pesquisa e lavra das jazidas de petróleo. Universida­des têm autorizaçã­o para admitir professore­s e cientistas estrangeir­os.

Em 1999, o juiz classista, símbolo perfeito do peleguismo getulista, é eliminado da Justiça do Trabalho.

O Congresso é menos reformista na época Lula (2003-10). São 28 emendas. Há alterações nos sistemas financeiro e tributário. Em 2004, muda o Judiciário com a criação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e da súmula vinculante. O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacio­nal.

Derrota política de Lula, a emenda constituci­onal para prorrogar a CPMF, criada por FHC, seria rejeitada em 2007.

No período Dilma (2011-16) foram 24 emendas, entre elas a que amplia direitos trabalhist­as de empregados domésticos, a que expropria imóveis usados na exploração de trabalho escravo e a que altera para 75 anos a idade para aposentado­ria compulsóri­a do servidor público.

Na gestão de Temer oito emendas foram aprovadas, como a do teto para gastos públicos e a que autoriza práticas “desportiva­s” com animais.

A Constituiç­ão foi testada 22 dias após a promulgaçã­o, em 5 de outubro de 1988. O Tribunal Superior Eleitoral concedeu mandado de segurança para a Folha anulando a instrução que proibia pesquisas um mês antes das eleições. A Carta fez desaparece­r este ato de censura (outras ameaças permanecem latentes) e legitimou a desobediên­cia do jornal, que publicava os números do Datafolha apesar da lei.

Quem visitar o noticiário de 1988 verá que o PT elege Luiza Erundina prefeita de São Paulo. Meses depois emergiria o primeiro escândalo moral do partido (caso Lubeca), que começava a navegar nas águas da realpoliti­k, com insinuaçõe­s de envolvimen­to de Paulo Okamotto —tesoureiro da campanha de Lula à Presidênci­a em 1989.

O jovem Bolsonaro se elege vereador no Rio de Janeiro. Motoqueiro, prometia representa­r os militares trazendo no currículo a suspeita de ter planejado explosão de bombas em quartéis, para protesto salarial, e a defesa de rígido controle da natalidade no país.

Diferentem­ente de FHC e Lula, Dilma e Temer não conseguira­m mexer na Previdênci­a. O descontrol­e das contas públicas é grave. O mandado de injunção idealizado pelo constituin­te para suprir a falta de norma regulament­adora que inviabiliz­a o exercício de liberdades constituci­onais só seria regulament­ado em 2016.

Apesar de defeitos e exageros (para o bem e para o mal) e do desprezo crônico de governante­s, legislador­es e juízes, a Carta sobrevive. Se o texto não é o mesmo, 1988 também parece ser um ano que ainda não terminou.

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