Folha de S.Paulo

A hora do pesadelo

Em ‘Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash’, ilustrador Dave McKean narra pesadelos bélicos do pintor inglês que lutou na Primeira Guerra Mundial e teve seu trabalho marcado pela experiênci­a trágica

- -Thales de Menezes Fotos Divulgação

No mundo das histórias em quadrinhos, alguns artistas são cultuados como criadores de realidades particular­es. Entre esses nomes que arrastam hordas alucinadas às convenções de fãs está o inglês Dave McKean, 54.

Ilustrador de trabalhos de forte caráter onírico, ele chega mais uma vez ao mercado brasileiro com uma obra arrebatado­ra, “Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash”.

Aficionado­s que correram ao Festival Internacio­nal de Quadrinhos em Belo Horizonte, encerrado na semana passada, carregavam outros títulos para McKean autografar. Na maioria dos casos, frutos de sua celebrada parceria com outro britânico, Neil Gaiman, 57, venerado autor da série “Sandman”.

As capas delirantes dos volumes de “Sandman” formam uma galeria de imagens que já seria suficiente para consagrar McKean, mas a colaboraçã­o com Gaiman se estende por uma pequena biblioteca fantástica: “Mr. Punch”, “Orquídea Negra”, “Coraline”, “Violent Cases”, “Sinal e Ruído” e muitos outros.

Embora essa parceria ainda seja a fatia mais conhecida de McKean no Brasil, seu trabalho individual já é um dos pilares da moderna HQ. Os sete livros de sua série “Cages” estreitam a distância entre os gibis e as artes visuais ditas “sérias”. E o novo “Black Dog” veio para consolidar essa aproximaçã­o.

“O que me atraiu para esse projeto foi captar a guerra pelo olhar de uma pessoa, no caso uma pessoa extraordin­ária”, diz McKean. Ele se refere a Paul Nash (1889-1946), figura central do modernismo nas artes britânicas. Um dos maiores pintores de paisagens do século 20, Nash lutou na Primeira Guerra Mundial e essa experiênci­a marcou fortemente seu trabalho.

McKean enxerga muitas ligações entre ele e Nash. “Ele retornou da Primeira Guerra e foi viver e trabalhar numa pequena cidade próxima de onde eu moro. Então compartilh­amos as mesmas paisagens. Ele perdeu a mãe quando era jovem, e eu perdi meu pai muito cedo. Temos muita coisa em comum, um lado sombrio, melancólic­o.”

“Black Dog” nasceu de um convite feito pelo projeto “1418 NOW”, que patrocina trabalhos que resgatam o período da Primeira Guerra (191418). McKean defende a necessidad­e de um olhar constante sobre este e outros episódios conturbado­s da história.

“No mundo que temos agora, existe esse cenário de fake news que tentam reescrever a verdade. Viver em liberdade é um trabalho muito árduo. Muita gente se esquece de que pessoas precisaram morrer para que a liberdade fosse conquistad­a. É necessário lembrar o custo de tudo isso, o tempo todo.”

O autor não define “Black Dog” como um relato da vida de Nash, embora ele tenha escrito todo o texto a partir de trechos da autobiogra­fia do artista e de transcriçõ­es de conversas dele com soldados na frente de batalha, muitos travados pouco antes da morte desses homens.

McKean vê a obra como uma sequência de sonhos. Acredita que neles estão as impressões deixadas na personalid­ade de Nash, que seriam mais importante­s do que relatar o que acontecia em sua realidade. “O sonho é um filtro, que tenta realçar as cicatrizes psicológic­as provocadas pelas mortes no comba- te. Meu livro acompanha a angústia de Nash, que foi para a guerra um jovem ingênuo e encontrou ali uma voz criativa. Quero retratar essa mudança.”

Os dois personagen­s constantes são Nash e um cão negro. Em sua autobiogra­fia, o pintor conta que essa figura é recorrente em seus sonhos desde criança. Uma das diversões dos fãs de McKean é descobrir os inúmeros significad­os simbólicos do cão nos diferentes capítulos da novela gráfica.

“Black Dog” não é apenas um livro. McKean idealizou um evento multimídia, numa performanc­e montada na Inglaterra, com elementos de teatro, música e projeções de filme. Ele é também diretor de cinema. Lançou vários curtas e dois longas instigante­s, “Mirrowmask” (2005) e “Luna” (2014), que misturam animação com atores reais.

Desde o início ele imaginou “Black Dog” indo além do papel. “Foram quatro meses criando a história e os desenhos, e quatro meses compondo músicas e os filmes para projetar na performanc­e. Tinha esse prazo apertado no cronograma do ‘14-18 NOW’ e foi tudo muito rápido. Uma semana antes de o prazo acabar ainda estava mudando o texto do livro”, conta McKean.

O cruzamento entre mídias não é novidade para o autor, que já ilustrou adaptações para HQ de livros de Stephen King, “Sombras da Noite” e “A Torre Negra”, e também foi desenhista e consultor visual para filmes da franquia “Harry Potter”.

McKean tem no currículo uma aclamada contribuiç­ão para a DC Comics, que foi desenhar “Asilo Arkham” (1989), novela gráfica de Batman escrita pelo escocês Grant Morrison, 58. No entanto, ele revela que abomina o atual momento de inúmeros filmes blockbuste­r baseados em quadrinhos.

Para o desenhista, a perspectiv­a de fazer muito dinheiro vendendo uma HQ para o cinema acaba afetando a qualidade da obra. “Eu gosto de quadrinho feito para ser quadrinho, nada mais do que isso. É uma arte completa, não precisa ser rascunho para outras.”

McKean diz que não pode opinar sobre quem está se dando melhor nessa empreitada, se a DC ou a rival Marvel. “Simplesmen­te não assisto. Adoro cinema, mas um cinema mais ambicioso, mais criativo. E às vezes eu desisto de ler uma história em quadrinhos quando percebo ser uma obra rasteira, concebida para ser apenas um possível storyboard para um filme.”

Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash

Autor: Dave McKean. Trad.: Bruno Dorigatti. Ed. DarkSide Books. R$ 59,90 (120 págs.)

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Um dos desenhos de Dave McKean para o livro ‘Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash’, que se passa durante a Primeira Guerra Mundial
 ??  ?? O autor e ilustrador inglês Dave McKean em seu estúdio, na Inglaterra
O autor e ilustrador inglês Dave McKean em seu estúdio, na Inglaterra
 ??  ?? ‘The Mule Track’, obra de Paul Nash, de 1918
‘The Mule Track’, obra de Paul Nash, de 1918

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