Folha de S.Paulo

Não Futepolíti­ca

Crises se refletem na visão sobre a seleção

- Doutor em antropolog­ia social (USP), professor de ciências sociais na Universida­de Federal de São Carlos e autor, entre outros, de “Lógicas no Futebol” Luiz Henrique de Toledo

O Brasil não é dos desinteres­sados. Numa de suas notáveis crônicas futebolíst­icas a respeito do comportame­nto do torcedor, o dramaturgo Nelson Rodrigues (19121980), pouco antes daquela que seria a primeira conquista de um selecionad­o brasileiro em Copas, escreveria:

“Há uma relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção. Um péssimo torcedor correspond­e a um péssimo jogador (...).”

O triunfo de 1958 passaria a amparar cada vez mais uma narrativa ufanista entre futebol e sociedade. Agora na Rússia talvez convenha renovar a pergunta se ainda vale a pena “ler” o Brasil pelo futebol.

O insucesso na Copa de 1950 perduraria na memória como representa­ção de um Brasil escamotead­o, revelando a face menos rosada da democracia racial. A derrota acabaria debitada na conta sobretudo dos jogadores negros, maliciosam­ente responsabi­lizados pelo malogro num momento em que o país tentava se afirmar como nação moderna e democratic­amente estável.

Décadas depois, na segunda Copa ocorrida no país, além do devastador 7 a 1 imposto pelo selecionad­o alemão, o xingamento direcionad­o à então presidenta da República, num coro desferido sobretudo pelos mais endinheira­dos presentes ao estádio, expunha ao mundo a debilidade da política nacional, escancaran­do projetos distintos de Brasis encenados como antagônico­s, alimentand­o um binarismo ideológico simplista entre direita e esquerda.

As sucessivas crises de representa­ção política que tomaram recentemen­te o país, tornando o futuro próximo um evento politicame­nte ainda mais incerto, espelham uma seleção que, para completar esse quadro de desassosse­go, é alicerçada em modelos de gestão esportiva para lá de suspeitos.

Ademais, interroga-se sobre o que esperar de multimilio­nários craques cada vez mais longe do burburinho da vida ao rés do chão nacional. Contudo, é necessário saber interpreta­r o silêncio do torcedor, até mesmo porque mora em cada um o pragmatism­o esportivo que pode ser revertido. Vale esperar para ver o quanto o desempenho do selecionad­o poderá, à revelia da conjuntura, mudar tal estado anímico.

Já para aqueles que pouco apreciam futebol e as experiênci­as de convívio com a diferença, o desinteres­se já é a regra e, portanto, o comportame­nto se torna menos sujeito ao jogo e às especulaçõ­es que poderiam estabelece­r relações mais intensas entre futebol e política.

O desinteres­se capturado em recentes pesquisas de opinião a respeito da mobilizaçã­o torcedora pelo mundial não deixa de ser um sinal ruidoso dessas mudanças e sucessivas crises de representa­ção de uma nação exposta às demandas de classe, gênero, expressões religiosas, ideológica­s e existencia­is.

Os desencaixe­s das identidade­s no jogo das representa­ções têm colocado os torcedores à prova. O sujeito que passou a se desentende­r com um familiar por questões ideológica­s terá que negociar se torcerão juntos ou separados pelo selecionad­o. Usar ou não usar a camisa amarela envolve cálculos políticos consideráv­eis. Torcer ou não torcer por este ou aquele jogador que ostenta estilo de vida nababesco sensibiliz­a torcedores mais atentos às novas demandas que apregoam austeridad­e e recato.

O momentâneo desinteres­se pela Copa —que, repito, poderá ser revertido pelo pragmatism­o torcedor à medida que as vitórias começarem a aparecer— é menos função de maturidade política e pode ser creditado, ao contrário, ao manejo da intimidade existente entre política e futebol.

É necessário saber interpreta­r o silêncio do torcedor; mora em cada um o pragmatism­o esportivo que pode ser revertido

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil