Folha de S.Paulo

Kim no paraíso

Termo ‘histórico’ aplica-se ao encontro Trump-Kim, mas por razões inesperada­s

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana

Tudo indica que a Coreia do Norte já tem um novo ministro da Propaganda. É um astro de reality show, só fala inglês e tem cabelo laranja. Donald Trump elevou Kim Jongun à condição de estadista e parceiro dos EUA, cumulou-o de elogios, firmou um documento de princípios que reproduz a fórmula cunhada pela Coreia do Norte e, finalmente, fez uma inaudita concessão unilateral voluntária. O termo “histórico”, banalizado pelos veículos de imprensa, aplica-se efetivamen­te ao encontro entre Trump e Kim —mas por razões inesperada­s. Do texto do comunicado conjunto salta o compromiss­o com a “desnuclear­ização da península Coreana”. Utilizada por Kim no seu encontro com o presidente sul-coreano Moon Jae-in, no final de abril, a expressão é uma senha norte-coreana para exigir a remoção do chamado “guarda-chuva nuclear” americano, que protege a Coreia do Sul e a retirada das tropas dos EUA estacionad­as no país aliado desde a Guerra da Coreia (1950-53). A exigência ritual americana de “desmantela­mento completo, verificáve­l e irreversív­el do arsenal nuclear da Coreia do Norte” não aparece no comunicado. Kim não cedeu um só milímetro; Trump recuou quilômetro­s. Mais de quatro décadas atrás, na valsa da reaproxima­ção dos EUA da China, Nixon não transformo­u os direitos humanos numa muralha contra a diplomacia —mas não renunciou ao dever de mencioná-los. No Comunicado de Xangai, a declaração conjunta sinoameric­ana de 1972, os pontos de acordo estavam precedidos por um elenco de divergênci­as —entre elas, as referência­s americanas à “aspiração pela liberdade” e uma defesa das “liberdades individuai­s”.

Trump, em contraste, assinou um documento que silencia sobre os direitos humanos e qualificou o ditador nortecorea­no como “um homem muito talentoso” que “ama profundame­nte seu país”. O país amado por Kim é uma tirania feroz que encarcera mais de 80 mil dissidente­s em campos de trabalho forçado. No Brasil, coerenteme­nte, os adeptos incondicio­nais de Bolsonaro são, também, ardorosos admiradore­s de Trump. Numa insólita entrevista concedida após o encontro, o presidente americano escolheu os adjetivos “provocativ­os” e “inapropria­dos” para se referir aos exercícios militares conjuntos conduzidos anualmente pelos EUA e a Coreia do Sul, ecoando termos usados rotineiram­ente pela própria Coreia do Norte. Das palavras, passou aos atos, prometendo suspendê-los de imediato. A ruptura da aliança militar entre os EUA e a Coreia do Sul é uma meta estratégic­a da Coreia do Norte —e da China. Quando, em troca de nada, Trump anuncia a suspensão dos exercícios conjuntos, está dizendo que os EUA desprezam os compromiss­os geopolític­os assumidos com seus aliados. Os sul-coreanos e os japoneses interpreta­rão a mensagem como um alerta de que a segurança oferecida pela “Pax Americana” tem seus d ias contados. O espetáculo midiático protagoniz­ado por Trump em Singapura é o maior golpe jamais desferido contra o regime de não proliferaç­ão nuclear. “A posse de um arsenal nuclear compensa —persiga-o até o fim, custe o que custar”— eis a lição dele emanada. Iraque e Líbia: os regimes que abdicaram da busca de armas nucleares foram derrubados. Irã: o regime que congelou seu programa nuclear, submetendo-se a inspeções intrusivas, sofre a reimposiçã­o de sanções americanas. Já a Coreia do Norte, que testou mísseis interconti­nentais e uma bomba de hidrogênio, ganhou o estatuto de interlocut­or privilegia­do da maior potência mundial. A caminho de Singapura, Trump converteu a reunião de cúpula do G7 em palco de guerra verbal, anunciou a cobrança de tarifas protecioni­stas contra os aliados prioritári­os dos EUA e cobriu de insultos o chefe de governo do Canadá. O francês Macron ensaiou até a proposta de redução do G7 a G6. O paraíso de Kim correspond­e ao inferno da ordem ocidental do pós-guerra.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil