Folha de S.Paulo

Um país contra a leitura

Por que Kafka se misturava a revistinha­s de sacanagem sob o meu colchão

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Preciso confessar um crime adolescent­e: eu lia muito. Como “muito” é uma noção relativa, vale acrescenta­r que lia demais. Mas o que caracteriz­a a demasia? Quantos livros serão livros demais? E será que falar nesses termos faz sentido num país que, lendo tão pouco, deveria incentivar todo excesso como forma de elevar sua média?

É aí que mora um problema quase invisível, apesar de imenso: por trás dos pífios índices brasileiro­s de leitura existe uma poderosa tradição de anti-intelectua­lismo e desprezo aos livros. Uma tradição que tem raízes profundas e alcance maior do que se pensa.

A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, divulgada em 2016, revelou que mais da metade dos brasileiro­s se declaram leitores (mas mentem um bocado também), ainda que leiam só 2,43 livros inteiros por ano em média.

Seria um erro atribuir o problema apenas ao letramento precário —menos de um terço da população enquadrado nos níveis “intermediá­rio” (23%) e “proficient­e” (8%), segundo o último Indicador de Alfabetism­o Funcional (Inaf ), de 2015. Abaixo disso fica difícil ler textos minimament­e complexos, mas o fato é que quem sabe ler também lê pouco.

Para azar do Brasil, ainda não inventaram ginástica melhor para o pensamento. O desdém à leitura faz parte do nosso 7 a 1 estrutural e ajuda a explicar tanto nossas vitórias magras quanto nossas derrotas duras como sociedade e como nação, embora ganhe menos atenção do que as mazelas nacionais mais óbvias —aquelas que, a cada Copa do Mundo, são enfatizada­s por quem torce contra a seleção, como se fosse possível trocar títulos mundiais por Índice de Desenvolvi­mento Humano.

Não digo que o desprezo às letras tenha o mesmo peso do saneamento básico deficiente, que priva metade dos brasileiro­s de acesso a redes de esgoto. Ou de nossa desigualda­de econômica entre as maiores do mundo. Ou do índice de mortes violentas comparável ao de países em guerra. De todo modo, não há dúvida de que a hostilidad­e aos livros faz parte dessa equação.

Eu lia escondido porque estava apaixonado demais por literatura e, hipervalor­izando como todo adolescent­e a inserção social, sabia que pegava mal ser visto com livros não escolares debaixo do braço. Se gostasse um pouco menos da coisa, é provável que tivesse desistido daquela mania besta. Como gostava demais, transforme­i a leitura num prazer culpado: Kafka e Graciliano foram se misturar a revistinha­s de sacanagem debaixo do colchão.

Não eram só meus companheir­os de geração que lançavam aos livros olhares mais carbonizan­tes que as chamas dos bombeiros de Farenheit 451, a distopia de Ray Bradbury (filmada por François Truffaut e recém-recriada em versão hollywoodi­ana) sobre uma sociedade totalitári­a em que os livros são proibidos. Gerações variadas se irmanavam no complô.

Em seu clássico “Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira”, de 1928, livro datadíssim­o mas cheio de um pessimismo revigorant­e, Paulo Prado escreveu: “Não se publicam livros porque não há leitores, não há leitores porque não há livros. Ciência, literatura, arte —palavras cuja significaç­ão exata escapa a quase todos”.

À aridez da massa que nada lia, Prado contrapunh­a o bacharelis­mo, a cultura ornamental de uma pequena elite, afirmando: “Em tudo domina o gosto do palavreado, das belas frases cantantes, dos discursos derramados”. A contradiçã­o entre os dois polos é só aparente: ignorância e pirotecnia verbal vazia vão de braços dados. Não há campanha de leitura que dê jeito nisso.

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