Será que é ela?
‘Samantha!’, série da Netflix, retrata artista mirim de carreira semelhante à de Simony, mas criadores dizem que a cantora e apresentadora é só uma dentre um caldeirão de referências dos anos 1980
são paulo Os criadores da série “Samantha!” (Netflix), que estreia no próximo dia 6, negam que a protagonista da história tenha como base a vida de Simony, apresentadora que marcou a infância de uma geração nos anos 1980 como integrante do infantil “Turma do Balão Mágico” (Globo).
As semelhanças entre elas, porém, vão além de traços físicos, cabelos longos e castanhos ou referências nominais —o grupo que Samantha lidera chama-se Plimplom, sendo que a música “Ursinho Pimpão” era um dos sucessos do Balão Mágico.
Como Simony, Samantha (Emanuelle Araújo) foi uma cantora mirim que, antes de completar dez anos, viveu a fantasia de ser uma celebridade na TV aberta, quando não havia TV paga nem internet na corrida por audiência.
Também chegou à vida adulta batalhando para manter alguma dignidade artística, mas não conseguiu deixar o própio berço —o imaginário de uma TV de essência popular, grotesca e de veia sensacionalista.
Entre outras similaridades, ela também se casa e tem dois filhos com um carcereiro (interpretado por Douglas Silva).
“A gente imaginou que as pessoas fossem comparar, e efetivamente ela era uma das referências. Mas estava lá o retrato dela, com o da Mara Maravilha, o da Xuxa, o de uma apresentadora do México. Acabou ficando um grande caldeirão de referências”, defende Rita Moraes, produtora-executiva da obra, citando outras celebridades do ramo.
Segundo Felipe Braga, criador da série, a história “parte de uma personagem que foi a criança mais amada dos anos 1980”.
“Não é uma invenção da cabeça dela, não é uma alucinação. Ela cantou, sim, em um estádio para 150 mil pessoas. Como é a psicologia de uma personagem, hoje aos 40 anos, que viveu em uma cultura de mídia, de TV aberta, em que só havia aquilo para ver?”
A Folha procurou Simony, que hoje tem 41 anos, mas a cantora, por meio de sua assessoria, disse que não falaria sobre a série da Netflix.
“Samantha” chega às telas surfando em uma onda de produtos culturais que lançam sobre os anos 1980 um olhar que é ambiguamente crítico e nostálgico.
Já com duas temporadas, a série “Stranger Things”, também da Netflix, cozinhou em 2016 elementos de filmes produzidos naquela época.
Em 2017, o filme “Bingo - o Rei da Manhã”, do diretor Daniel Rezende, trouxe como protagonista um ator que, nos bastidores de seu programa infantil, vivia conflitos familiares e a dependência química. Era a cara do Bozo, o palhaço consagrado no SBT.
Agora, a Netflix parece gargalhar das infâmias de um setor que vem lutando com a concorrência virtual, o que pode ser resumido por uma frase da nova série: “Quem está pronto para se humilhar na TV aberta?”, diz o agente de Samantha (Daniel Furlan), antes do início de um programa.
Para o criador Felipe Braga, “Samantha!” simboliza uma geração de profissionais na TV que, sem a diversidade de opções na TV paga e na internet, direcionava um mesmo programa “para a família inteira”.
Isso, para ele, explicaria alguns excessos do período: a Xuxa era erótica sob o olhar de pais e maridos, mas também maternal para os baixinhos.
Em “Glow”, que chega a sua segunda temporada nesta sexta (também na Netflix), outro personagem —o diretor de cinema que investe em um programa de mulheres lutando com fantasias sensuais— traz mais uma definição afiada: “é pornô para ver com os filhos”, ele vende para um produtor.
A série também tem foco nos anos 1980, com todas as referências em néon, tecidos brilhantes e formas futuristas que a década carrega.
“É uma experiência que, para a gente, não faz mais sentido, porque hoje a televisão está fragmentada, e cada um assiste o que quer”, diz Braga.
Também faltava filtro em um ambiente que não era cobrado por movimentos sociais, como acontece hoje.
Braga retorna ao “Show da Xuxa” para dar um exemplo: a apresentadora era auxiliada por um boneco chamado Dengue, “numa época em que a dengue estava matando um monte de gente”.
“Era um boneco fofinho e assassino”, completa Rita Moraes. Em “Samantha”, essa referência toma forma no mascote Cigarrinho, que acompanha a trajetória da protagonista.
Outro elemento estético que a série retoma são as referências ao imaginário espacial, de planetas, estrelas, cometas. “Os anos 1980 foi apaixonado por figuras assim. A Xuxa saía de um disco voador, havia o Balão Mágico. Tudo voa. Es- sa coisa do espaço e de voar é sempre muito forte.”
Os criadores da série dizem ainda que a pesquisa que deu base à história trouxe a percepção de que essa identidade foi compartilhada por países na vizinhança. “Não era a Xuxa que era absurda, era uma coisa de geração em toda a América Latina”, diz Braga.
Oferta sobre anos 1980 reflete entrada de uma geração no mercado televisivo
A fartura na oferta de produtos audiovisuais direcionados a retratar os anos 1980 resultou, naturalmente, de uma nostalgia geracional, diz Felipe Braga, criador da série “Samantha!”.
Quem passou a ter atuação no mercado “foi criança nos anos 1980, e por isso a gente está vendo cada vez mais programas que abordam essa época”, afirma.
“Também há a vontade de olhar para um contexto cultural que parece mais ingênuo e, por outro lado, menos politicamente correto”, completa.
A questão de mercado também se faz presente. “Samantha” foi criada mirando não apenas o público brasileiro.
Os latinos, que compartilharam um mesmo modelo de produção cultural televisivo, são um alvo imediato, e a série ainda mira públicos na Europa e mesmo no Oriente.
O processo de roteirização da série passou pelo direcionamento de uma equipe montada pela Netflix cujos integrantes tinham origens diversas.
“A gente brincava que era um encontro da ONU, com México, Espanha, Coreia e outros países entre os criativos”, ri Braga.