Folha de S.Paulo

‘Além do Homem’ vai bem com antropofag­ia

Longa melhora na segunda metade, sob influência de signos modernista­s, quando avança para o terreno do imaginário

- Naief Haddad NH

CINEMA Além do Homem ***** Brasil, 2018 .Direção: Willy Biondani. Elenco: Sérgio Guizé, Fabrício Boliveira, Débora Nascimento. 14 anos. Estreia nesta quinta (28)

O cinema brasileiro tem uma valiosa história de filmes em que um há uma profunda transforma­ção de um personagem em uma viagem pelo interior do país. Ideias e sentimento­s mudam sob o estímulo de novas vivências.

“Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), de Marcelo Gomes, e “Arábia” (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, trilham esse caminho com excelência. Mas nas últimas três décadas, nenhum filme brasileiro ocupou esse território temático tão bem quanto “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles.

Também ligado a essa linha, o novo “Além do Homem” não se equipara a “Central” como síntese simbólica do país. Tampouco na capacidade de arrebatame­nto. Mas o filme merece atenção.

Experiente profission­al de publicidad­e e diretor de “Sertão: Veredas” (2008), mescla de documentár­io e ficção produzido no centenário de Guimarães Rosa, Willy Biondani cria passagens interessan­tes no novo trabalho, especialme­nte na segunda metade.

Escritor brasileiro que vive em Paris há sete anos, Alberto (Sérgio Guizé) é incumbido por um editor de voltar ao seu país para investigar os últimos passos de um famoso antropólog­o francês.

Em relação à identidade cultural, Alberto é um Narciso às avessas. Em nome de um intelectua­lismo vazio, o escritor rejeita o espelho. Ao avançar por um sertão sem nome, ele reforça seu desapreço pelo Brasil, do clima quente aos moradores que lhe parecem impertinen­tes.

“Além do Homem” não começa bem. Homens e mulheres que atravessam a história de Alberto são mais tipos do que personagen­s com alguma complexida­de. Nos primeiros minutos, em Paris, aparece o editor que bate papo com amigos em um barco ancorado no rio Sena e revela seu fascínio por um suposto exotismo dos trópicos.

Ao chegar ao Brasil, o escritor é ciceronead­o por Tião (vivido por Fabrício Boliveira), um motorista preguiçoso e lascivo. A referência a Macunaíma é clara, mas Tião passa longe da riqueza de ambiguidad­es do personagem de Mário de Andrade. Alberto encontra ainda a prostituta sensual, o louco sábio e o moleque maroto em um desfile de caracteriz­ações “made in Brazil”.

A paciência do espectador é recompensa­da a partir da metade do filme. Sob a influência de signos modernista­s, especialme­nte a antropofag­ia de Oswald de Andrade, “Além do Homem” avança para um terreno imaginário.

A partir daí, há menos diálogos, e as imagens exuberante­s tomam o filme. É também quando a trilha sonora de Egberto Gismonti alcança seu ápice. Essa mudança de eixo não implica deixar de lado a abordagem da identidade cultural, mas passar a fazê-lo de modo mais sutil, sem a muleta das reiteraçõe­s.

Berenice Procura *****

Brasil, 2016. Direção: Allan Fiterman. Elenco: Cláudia Abreu, Eduardo Moscovis, Valentina Sampaio. 14 anos. Estreia nesta quinta (28)

O cinema brasileiro parece ter, enfim, descoberto os romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Professor de psicanális­e por décadas, ele estreou na ficção aos 60 anos com “O Silêncio da Chuva”, livro de 1996.

Desde então, o autor carioca lançou 11 romances, que formam o que há de melhor na literatura policial brasileira da atualidade.

Desse conjunto de obras, só “Achados e Perdidos” havia chegado aos cinemas, sob a direção de José Joffily, em 2005.

Agora “Berenice Procura”, filme baseado no seu sexto romance, entra em cartaz. Além dele, “O Silêncio da Chuva” e “Vento Sudoeste” devem ser adaptados para o cinema.

“Berenice Procura” é o único dos seus livros que não tem o delegado Espinosa como protagonis­ta. Por outro lado, como nos demais romances, as principais ações se passam em Copacabana.

No filme, aliás, o bairro é visto sobretudo a partir do táxi conduzido por Berenice (Cláudia Abreu).

A obsessão dela pelo trabalho está associada à ruína familiar. No apartament­o de decoração esmaecida, Berenice mal conversa com o marido, o repórter de TV Domingos (Eduardo Moscovis), e se mantém alheia às descoberta­s do filho adolescent­e, Thiago (Caio Manhente).

Apesar do mal-estar, não se notam sinais de mudança na rotina da taxista até que um crime na praia deixa as relações sob nova perspectiv­a.

Perdem-se camadas de sutileza na transposiç­ão da literatura para o cinema, o que não impede o filme de manter o suspense até o fim e de atrair a curiosidad­e do espectador pelo destino dos personagen­s centrais.

Diretor bem-sucedido na teledramat­urgia da Globo, Allan Fiterman acerta ao optar pela reverência à obra de Garcia-Roza, sem buscar reinventá-la numa adaptação de tom mais autoral.

Fosse um autor mais utilizado pelo cinema, inovações de linguagem e de roteiro talvez viessem a calhar.

Além disso, há afeto no olhar de Fiterman para Copacabana, mas não uma tentativa de edulcorar o tradiciona­l bairro, o que evidenteme­nte soaria artificial.

Por fim, o diretor sabe como conduzir seu elenco.

Cláudia Abreu e Caio Manhente estão bem, mas quem chama mesmo a atenção é Eduardo Moscovis como um embrutecid­o repórter de um programa policiales­co —mérito também do próprio ator.

O desempenho da atriz transgêner­o Valentina Sampaio é outro trunfo.

Garcia-Rosa merece mais e melhores visitas do cinema à sua obra, mas o filme de Fiterman já é uma boa notícia.

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Edson Lucinao/Divulgação O ator Sérgio Guizé como Alberto, protagonis­ta de ‘Além do Homem’, filme de Willy Biondani que estreia nesta quinta (28)

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