Folha de S.Paulo

Bergman que Bergman proibiu diz coisas que seus filmes habituais não mostram

- Inácio Araujo

Quase sempre é difícil acreditar que “Isto Não Aconteceri­a Aqui” (1950) seja um filme de Ingmar Bergman. Mas é. Ninguém se espantará, no entanto, de saber que o gênio sueco desautoriz­ou e pouco depois proibiu a exibição do filme. Como depois de sua morte os produtores também mantiveram a proibição, só muito recentemen­te a cinemateca sueca pôde restaurá-lo.

Agora, em Bolonha, no festival Ritrovato, o filme, exibido na última terça-feira (26), virou um programa especial, pois quase ninguém vivo pode dizer que o viu.

Bergman disse que se arrependeu de ter começado a rodar “Isto Não Aconteceri­a Aqui” com apenas quatro dias de filmagem. Quase um recorde. Visto hoje, porém, pode-se imaginar que Bergman faria boa carreira no cinema americano. Só que não seria Bergman nem a pau.

Temos lá um certo Atkä Natas, ex-nazista, que chega à Suécia a serviço de um país imaginário chamado Liquidatzi­a levando papéis secretíssi­mos para seus camaradas (pois visivelmen­te Liquidatzi­a é o outro nome da URSS).

Pelo sim, pelo não, na mesma pasta traz documentos que gostaria de levar à embaixada dos EUA. A notar: Natas de trás para diante é Satan, vulgo Satã. Enfim, um sobreviven­te.

Até aí estamos a encarar um thriller de espionagem bem à americana e bem do período. Por vezes bem resolvido, em especial no início (a festa de casamento sendo interrompi­da pela chegada do homem. Ou, mais tarde, quando se tem um cadáver sendo conduzido no meio de um palco durante o ensaio de um grupo de coristas).

No entanto, desde o princípio notamos que Bergman dá mais atenção à mulher de Natas, Vera, que bem bergmaniam­ente tem um amante. Bem à moda do gênero, trata-se de um policial. Logo vemos que Bergman se interessa pelo drama da mulher, por seu rosto e por suas tensões bem mais do que por tiras e espiões somados.

Deve, porém, ater-se às exigências do thriller. O que faz com má vontade tão evidente em certas ocasiões que o confronto entre Natas e o amante de Vera mais lembra um burlesco.

Há outro aspecto a reter no filme: ele capta bem o trançatran­ça que ocorreu na Europa do pós-guerra, com gente sendo movida de lá para cá ou se deslocando loucamente. Vera, aliás, é uma nativa de Liquidatzi­a e cúmplice do marido na espionagem, mas, no entanto, não quer nem ouvir falar da pátria nativa.

Ninguém dirá que este é um grande Bergman. Todo o roteiro parece a léguas de seus interesses. Talvez daí venha a proibição. Todavia, aqui e ali explodem os clarões bergmanian­os e a mão do diretor admirável já está presente e visível.

De certa forma, esse Bergman renegado, esse Bergman não Bergman, nos diz coisas que seus filmes habituais, seja de que época forem, não mostram.

Seu traquejo no filme de gênero e mesmo o conhecimen­to do estilo à americana são dois aspectos a reter.

E, sim, em definitivo, está na cara que Bergman pouco se lixava para política.

Ninguém dirá que ‘Isto Não Aconteceri­a Aqui’, filme de 1950 proibido pelo diretor e agora exibido no Cinema Ritrovato, é um grande Bergman. O roteiro parece a léguas de seus interesses. Todavia, a mão do diretor já está presente e visível

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