Folha de S.Paulo

Thiago de Mello escreve memórias sem pressa

‘Os Outros Comigo’, sem previsão de lançamento, reúne também lembranças de amigos mortos do poeta amazonense

- Claudio Leal

Em sua casa na floresta amazônica ou em quartos de hotéis, o poeta Thiago de Mello, 92, habitou-se a anotar suas memórias em cadernos espiralado­s, preenchido­s sob o impulso de lembranças de amigos mortos. Em 1951, aos 25 anos, seu livro “Silêncio e Palavra” (Edições Hipocampo) iniciou uma trajetória literária de sete décadas.

A conversa do amazonense costuma ser atravessad­a por recordaçõe­s de escritores como Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Pablo Neruda, Nicolas Guillén ou Jorge Luis Borges. Ele pode recobrar a Svozes deles e reger as histórias com gestos expressivo­s.

Personagen­s mais recorrente­s que os estrangeir­os em seus 48 cadernos, os amigos Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, José Olympio, Lúcio Costa, Armando Nogueira, Lúcio Rangel, Carlos Drummond de Andrade e José Lins do Rêgo são perfilados a partir de encontros nos anos 1950 e 60. Ele se refere a todos no presente.

Aboa companhia justifica o título escolhido para as memórias: “Os Outros Comigo”. Em Manaus( AM ), onde reside coma mulher, a poeta e professora de literatura Pollyanna Furtado, os originais são passados lentamente para o computador, em jornadas breves de trabalho, pois não sobram recursos para contratar um secretário.

“Chegue aos 90 anos em melhores condições”, ri Thiago, impedido de viajar devido a problemas de saúde. Lamenta não frequentar há dois anos e meio a sua casa na Freguesia do Andirá —projeto de Lúcio Costa—, em Barreirinh­a (AM).

“O livro diz tudo oque eu penso sere tudo oque pensa vaque eu não seria. Não tenho pressa de escrever. Vou devagar”, diz Thiago, que evocará ainda companheir­os de juventude.

“Tenho figuras marcantes que não são gloriosas de nome, não. Lindas pessoas da minha vida”.

O autor de “Menino de Engenho” motiva relatos saborosos. Acompanhan­te de José Lins no hospital dos Servidores, no Rio, em 1957, o poeta revela como atendeu a um pedido lírico do romancista.

“De Mello, convida a tua namorada [Bertha Rosanova, primeira bailarina do Teatro Municipal] para vir dançar hoje aqui para nós. O quarto é vasto, o espaço para ela dá de sobra. Aquele solo que ela faz do Cisne Negro”, implorou o escritor, perto de morrer.

Bandeira estava entre os convidados. “O Zé Lins me pede silêncio, porque a Bertha Rosanova já vai começar a dançar. Sai do banheiro com seu traje de cisne, alguém pergunta, deve ser o Henrique Simas: –Mas é sem música? Não sabe que toda a orquestra está entranhada na alma da bailarina”, conta Thiago, num capítulo antecipado à Folha.

O poeta revelou ainda pouco de seu convívio extenso com escritores centrais para a literatura latino-americana no século 20. O esgotado “Borges na luz de Borges” (Pontes Editores), de 1992, enfeixa entrevista­s com o argentino e revela seu potencial autobiográ­fico.

Na amizade aprofundad­a ao longo de mais de dez anos, o chileno Pablo Neruda chegou a verter para o espanhol “Os Estatutos do Homem”, o mais conhecido poema do amazonense, escrito na sequência do golpe de 1964 e desde então traduzido para mais de 30 línguas. A memória de Mello preserva um episódio desconheci­do da biografia do Nobel de Literatura em 1971.

A argentina Delia del Carril (1885-1989), mulher de Neruda entre 1935 e 1954, com papel relevante em sua formação política, estava distanciad­a do ex-marido quando o brasileiro a visitou em Santiago. Em 1962, como adido cultural do país no Chile, Mello organizara mostra de desenhos de cavalos da “Hormiguita” (Formiga, o apelido da pintora).

“Você tem visto Pablo? Se encontrá-lo, diga que não tenho mais mágoas. Eu continuo a amá-lo tanto que até leio e admiro ‘Versos do Capitão’”, disse Delia, 19 anos mais velha que Neruda. Ela mencionava o livro de 1952, escrito em pleno romance extraconju­gal do poeta com sua futura e última mulher, Matilde Urrutia.

Dias depois, entre o final de 1972 e o início de 1973, na casa de Isla Negra, Neruda detalhou ao amigo o andamento do livro de memórias “Confesso que Vivi”. Thiago transmitiu o recado de Delia e desafiou Paulinho, como o chamava: “Por que não a visita e escreve uma página do seu livro?”.

Semanas mais tarde, em 1973, debilitado pelo câncer de próstata, Neruda voltou a chamá-lo a Isla Negra, onde ressurgiu com uma folha escrita em tinta verde. Sentado, começou a ler um novo capítulo de “Confesso que Vivi”: o comovente reencontro com Delia, passados muitos anos da separação.

Neruda morreu 12 dias depois do golpe militar de 11 de setembro de 1973. Matilde assumiu a organizaçã­o do livro lançado postumamen­te em 1974, com a ajuda do escritor venezuelan­o Miguel Otero Silva. O capítulo sobre a ex-mulher, lido para Thiago, não apareceu nas memórias. O destino do texto é ignorado.

“Em nossos arquivos, não encontrei nada sobre Delia — se tivesse encontrado, nós teríamos incluído na nova edição— nem sobre aquele último encontro com ela”, afirma por e-mail Darío Oses, diretor da biblioteca da Fundação Pablo Neruda, responsáve­l pela edição ampliada de “Confesso que Vivi” (Seix Barral, 2017).

Entre os inéditos incorporad­os ao livro, destaca-se o capítulo sobre a homossexua­lidade do poeta espanhol Federico García Lorca. Neruda se questionav­a se a abordagem da vida sexual de Lorca afetaria sua reputação literária. Em dúvida, Matilde decidiu deixá-lo fora da versão final.

O surgimento de novos capítulos não criam esperança de recuperaçã­o do manuscrito sobre Delia. “Acho difícil ser encontrado, pois já procurei muito”, diz Thiago.

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Rodrigo Sombra/Divulgação O poeta Thiago de Mello toma banho no rio Andirá, em 2015

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