Folha de S.Paulo

Os boçais são perigosos

Torcedores dos vídeos da Rússia são protótipo do defeito moral mais nojento

- Mariza Dias Costa Psicanalis­ta, crítico cultural, escritor (‘Hello, Brasil!’), criador da série ‘Psi’ (HBO) ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

Contardo Calligaris Antes de mais nada, contemple esta fotografia (encurtador.net/vGHNP): são dez soldados alemães, talvez durante a batalha de Stalingrad­o. No meio do horror, eles estão sorrindo, alegres, porque, no meio deles, enforcada numa árvore sem folhas, está uma jovem russa, morta —uma enfermeira, com seu braçal da Cruz Vermelha.

Talvez, antes de enforcá-la, eles tenham brincado com ela. Sabe, aquele jogo divertidís­simo de mandar o outro, que não fala alemão, repetir frases que ele ou ela não entendem, tipo: eu sou puta e dou para alemão, ou, então, eu dou para todos os homens de Montes Claros, Minas Gerais, ou, então, eu sou a putinha do Neymar…

Desculpe, me atrapalhei. Confundi essa imagem com vídeos de torcedores brasileiro­s na Rússia, que invadiram as redes sociais na semana passada.

Se você desconhece (sorte sua), comece por este (encur tador.net/loLOU), que é edificante: um torcedor brasileiro de camisa canarinho manda um menino russo (visivelmen­te menor) repetir que ele é “filho da puta, viado e que dá para o Neymar”. Por a vítima ser menor, esse, aliás, é um crime grave na Rússia como no Brasil.

O primeiro dos outros vídeos é parecido com o de Stalingrad­o —um grupo ao redor de uma moça. O segundo é a obra de um boçal sozinho, que pede para uma jovem russa dizer em português que ela dá para os homens de Montes Claros (minha simpatia aos habitantes da cidade mineira, que não mereciam essa “propaganda”).

Será que estou exagerando, com essa comparação entre os vídeos dos torcedores e a foto de Stalingrad­o, que representa­ria um fato muito mais grave? Penso exatamente o inverso.

Os soldados alemães estavam no meio de uma batalha infernal, que durou meses; eles tinham visto sei lá quantos companheir­os morrerem, e podiam eles mesmos serem mortos a qualquer momento.

O mesmo poderia ser dito para muitas imagens análogas. Considere um dos casos mais revoltante­s: as fotografia­s de tortura na prisão de Abu Ghraib —a imagem de Lynndie England, de cigarro e sorriso na boca, apontando os dedos, como uma arma, para os genitais dos presos nus que estão do seu lado. Ela pretende ser engraçada, hein? Mas tudo isso acontece no meio de uma guerra, que constitui, ao menos, um pretexto para a boçalidade.

Alguém observará que os torcedores canarinhos talvez estivessem bêbados. Pois é, se beberam, não foi para fugir do horror (como os soldados), mas de propósito, para ter a covardia moral necessária para serem boçais. Quando se bebe de propósito para ser canalha, a embriaguez é uma agravante.

Concluindo, os torturador­es de Abu Ghraib e da fotografia de Stalingrad­o tem alguns pretextos para serem boçais, os torcedores, não.

Por isso, os torcedores dos vídeos na Rússia são o protótipo do defeito moral mais grave, mais perigoso e mais nojento: eles formam um grupo para se permitir um comportame­nto que, sozinhos, eles não se permitiria­m.

Esse defeito moral é a matéria-prima de qualquer totalitari­smo, que só é possível porque há covardes que procuram e encontram no grupo a autorizaçã­o para serem canalhas.

Alguns se manifestar­am para minimizar o “erro” (meu amigo Hélio Schwartsma­n) dos torcedores. Outro amigo, Boris Casoy, chegou a dizer que tudo era apenas uma molecagem de péssimo gosto. Nosso ministro do Turismo declarou que não foi tão grave, porque não morreu ninguém (socorro).

Discordo radicalmen­te. Os torcedores boçais na Rússia não são moleques; são perigosos canalhas. São farinha do mesmo saco dos skinheads que se juntam para massacrar uma travesti, dos nazistas que saíam procurando um judeu para lhe cortar a barba, dos jovens que colocaram fogo no índio Galdino, numa rua de Brasília.

Alena Popova tenta incriminar na Rússia os autores dos vídeos. Quem puder mande para ela o link da foto de Stalingrad­o.

Nota: a boçalidade adora uma fotografia. Os perpetrado­res, em geral, querem imortaliza­r o momento de sua canalhice, que é sempre grupal. Na de Stalingrad­o, os soldados eram 11, porque alguém tirou a instantâne­a.

A selfie, de uma certa forma, torna mais fácil ao canalha agir sozinho. Por exemplo, no vídeo em que um menino russo é abusado, só há um torcedor, mas a postagem do vídeo faz apelo à cumplicida­de de todos os amigos e seguidores das redes sociais. Minha irritação aumenta, aliás, ao constatar que os canalhas pensaram que a gente gostaria de vê-los em ação.

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