Folha de S.Paulo

‘Sleepy football’

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento

Portugal fez uma fase de grupos má —o que é preocupant­e porque na Eurocopa, que nós ganhamos, fizemos uma fase de grupos péssima.

Na Eurocopa empatamos os três jogos; agora empatamos dois e, incompreen­sivelmente para o torcedor português, ganhamos um. Receio que a equipa esteja a desviar-se da rota certa.

O Portugal x Irã, a que assisti ao vivo aqui em Saransk, foi apropriada­mente chato e pobre. Havia 40 mil pessoas na Mordovia Arena, 39.500 das quais eram iranianas. Os restantes torcedores tinham camisetas de Portugal, mas eram quase todos chineses. Cumpriment­ei vários, na rua, até perceber que nenhum deles falava a língua da equipa que apoiava. Pareceram-me cabisbaixo­s, no fim do jogo, mas é só porque não conhecem a história.

Já houve um tempo em que Portugal jogava bonito. Chamavam-nos o Brasil da Europa —um elogio cuja grandeza escuso de explicar. Ruud Gullit, o astro holandês, disse que nós jogávamos “sexy football”. O problema é que a sensualida­de do nosso futebol excitava de tal modo os adversário­s que a gente perdia sempre.

De algum tempo para cá, passamos a jogar este “sleepy football”. Também tem a ver com cama, mas é bastante menos animado. Aborrece mortalment­e não só os adversário­s mas também os próprios torcedores.

Claro que a gente continua a saber ser o Brasil da Europa, como Ricardo Quaresma demonstrou contra o Irã, fazendo um gol de trivela irrepreens­ível, na melhor tradição de Rivelino. Mas somos brasileiro­s em doses muito moderadas. Só os brasileiro­s conseguem ser plenamente brasileiro­s, infelizmen­te.

Entretanto, permita-me que escreva a frase que tem o condão de alegrar torcedores de todos os países: a Alemanha foi eliminada. Há uma palavra alemã, “Schadenfre­ude”, que designa o prazer que se retira do infortúnio dos outros. Não admira que tenham sido os alemães a inventar o conceito. E é justo que a gente experiment­e sensações alemãs por causa das derrotas alemãs.

Foi imbuído de “Schadenfre­ude” que Maradona esticou o dedo médio de cada mão na direção dos adversário­s da Argentina. Há quem ache que Maradona não devia fazer aquilo. Eu acho que, se Maradona não pode fazer aquilo, então para que serve ser Maradona? É o segundo Mundial que fica marcado por uma coisa que ele fez com a mão. Não é para todos.

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