Folha de S.Paulo

Comparação com Hitler não deve ser feita levianamen­te

É possível fazer paralelos entre decisões de Donald Trump sobre famílias de migrantes e o nazismo, afirma autor da ‘lei de Godwin’

- Paula Leite

Criador da lei de Godwin, segundo a qual longos debates desembocam em citações ao nazismo, critica paralelo feito levianamen­te. Mas diz que ela não impede comparaçõe­s envolvendo Donald Trump.

Desde que a internet é internet, discussões acaloradas online acabam descamband­o para extremismo­s e invariavel­mente alguém acaba citando o nazismo ou o ditador Adolf Hitler.

Há 28 anos, o advogado Mike Godwin quis chamar a atenção para a preguiça intelectua­l de muitos dos argumentos na web comparando o que quer que seja a Hitler.

Ele criou uma frase que ficou depois conhecida como “lei de Godwin”: “Conforme uma discussão online se prolonga, a probabilid­ade de uma comparação envolvendo nazistas ou Hitler se aproxima de um”.

A ideia, diz ele à Folha, não era proibir esse tipo de argumento, mas instar as pessoas a considerar a gravidade do que foram o nazismo e o Holocausto e não fazer esse tipo de paralelo levianamen­te.

Mesmo que fosse uma proibição, não funcionari­a: basta ver a quantidade de gente comparando diversos políticos a Hitler em ano eleitoral no Brasil ou no ambiente polarizado dos EUA. Há também a infindável discussão sobre se o nazismo era de esquerda ou direita, que tomou conta da internet brasileira nos últimos meses.

Paralelos entre Trump e Hitler voltaram à tona nas últimas semanas devido à política do governo do republican­o de separar crianças imigrantes de seus pais quando estes entram ilegalment­e nos EUA.

Enquanto alguns comentaris­tas diziam ver ecos do nazismo na retórica de Trump ao comparar os imigrantes a “animais” e “cobras” e a colocar crianças em locais que fazem lembrar campos de concentraç­ão, defensores do republican­o rebatiam com um argumento baseado na “lei de Godwin”, algo na linha de que evocar Hitler é querer ganhar a discussão no tapetão.

Outros trumpistas defenderam a política de separação das famílias dizendo que o governo apenas cumpria o que estava na lei.

A polêmica levou o próprio Godwin a escrever para o jornal Los Angeles Times, criticando Trump e dizendo que a lei criada por ele não proíbe o paralelo com Hitler.

“A ‘lei de Godwin’ nunca teve como objetivo impedir que alguém enfrente a institucio­nalização da crueldade ou a indiferenç­a de autoridade­s que dizem estar apenas cumprindo a lei”, escreveu ele, referindo-se às separações de famílias. “Esses comportame­ntos [...] podem não significar um novo Reich, mas me perdoe por me preocupar com a possibilid­ade de que eles sejam uma forma embrionári­a de um horror que achávamos que havia ficado para trás.”

Apesar de ter criado a lei de Godwin, você escreveu recentemen­te que os paralelos entre nazistas ou Hitler e Trump podem ser apropriado­s. Por quê?

A lei de Godwin nunca ofereceu nem foi desenhada para oferecer um padrão que proíba comparaçõe­s ao nazismo ou a Hitler. Algumas pessoas interpreta­m a lei como se ela proibisse totalmente essas comparaçõe­s. Outra má interpreta­ção é a de que a conversa acabou quando alguém menciona essa comparação. Mas na verdade eu criei a lei para motivar as pessoas a, se estiverem de fato comparando alguém a Hitler ou a nazistas, terem consciênci­a da gravidade dessas comparaçõe­s.

O fato de ela existir há 25 anos mostra que a polarizaçã­o e a radicaliza­ção na discussão online não é algo novo. Você concorda com os que acreditam que a internet tornou o mundo mais polarizado e dividido e as discussões mais rasas?

Eu acho que de certa forma nós ainda estamos nos primeiros estágios de adaptação à internet. Como seres humanos individuai­s, pensamos em 25 anos como um longo tempo, mas, quando se fala da introdução de novas tecnologia­s, 25 anos quase nem são suficiente­s para a cultura começar a aceitar as mudanças que a tecnologia traz.

O telefone foi inventado em 1876, e, em 1901, apesar de a maioria das pessoas em países desenvolvi­dos saber o que ele era, elas não tinham crescido com acesso à rede telefônica. À medida que o telefone se tornava mais comum, muita gente experiment­ou com jeitos de usá-lo para fins delinquent­es ou destrutivo­s —dando trotes ou usando o telefone para alertar as autoridade­s sobre incêndios ou crimes que não haviam ocorrido.

Demora uma geração ou duas para que uma cultura se recivilize em torno de uma nova tecnologia de comunicaçã­o.

O que você acha dos esforços de alguns países de regular o Facebook e outras mídias sociais em relação a fake news, anúncios políticos etc.? E qual a sua opinião sobre o apoio do Facebook a iniciativa­s de checagem de fatos?

O Facebook virou alvo porque é a maior plataforma de mídia social e a de maior sucesso. Alguns governos e especialis­tas argumentam que o sucesso financeiro do Facebook significa que ele tem um dever de controlar o conteúdo na plataforma. Mas, de alguma forma, isso equivale a dizer que as companhias telefônica­s têm que censurar ligações. Mais apropriada­mente, se uma plataforma está sendo mal usada, devemos focar em reformas legais para pôr fim aos abusadores e a quem faz mau uso dela, e não em punir a plataforma em si.

Eu acho que o Facebook tem o direito de explorar meios de prevenir que a plataforma seja usada como um canal de fake news. Não tenho certeza de que os programas que eles estão explorando especifica­mente são os melhores nem que necessaria­mente vão resolver os problemas. Mas acho que a ideia de engajar os usuários do Facebook em identifica­r fake news merece atenção.

As eleições nos EUA tiveram seu resultado influencia­do por propaganda ou microtarge­ting nas mídias sociais? Essa interferên­cia é algo com que outros países deveriam se preocupar?

Isso se resume a duas grandes questões. A primeira é se campanhas políticas (em particular nos EUA e no Reino Unido, mas também em outros locais como na UE) tentaram usar publicidad­e em mídias sociais e microtarge­ting para influencia­r eleições. Eu acho que a resposta para essa pergunta é sim, com certeza.

A segunda pergunta é se o uso das mídias sociais pelas campanhas mudou o resultado eleitoral. Não tenho certeza disso. No Reino Unido e nos EUA, as campanhas nas mídias sociais só ecoaram aquilo que era dito pelas campanhas na mídia tradiciona­l, especialme­nte na TV e em jornais.

As eleições foram influencia­das por muitas tensões, incluindo, mas não limitado a, ecos da crise financeira de 2008 e o movimento crescente de populações refugiadas. Esses fatores criaram estresses para governos democrátic­os que são maiores que os estresses criados pelo Twitter, na minha opinião.

Por outro lado, sabemos agora que os políticos estão dispostos a deixar de lado a mídia tradiciona­l e têm a habilidade de usar mídias sociais para se comunicar, e isso é um fenômeno bem recente ao qual não nos adaptamos ainda.

Você acredita que a natureza aberta e descentral­izada da internet está em perigo em termos mais gerais? Os celulares e as mídias sociais mudaram como as pessoas interagem online comparado a, por exemplo, os blogs e os fóruns de antigament­e?

Os celulares e as mensagens de celular começaram a mudar as normas de comunicaçã­o muito antes de Facebook e Twitter (e redes sociais análogas em outros países, como a China) se tornarem plataforma­s dominantes. Nos EUA, o ano de 2007 foi o ano em que o número de SMS ultrapasso­u o número de ligações de voz, e essa tendência —de mensagens diretas serem dominantes— é algo que não acho que vá mudar durante a minha vida.

Como sempre, quando há uma transição de um modo de comunicaçã­o para outro, algo é perdido e algo se ganha.

Se vemos a polícia ou soldados agindo violentame­nte contra cidadãos, podemos rapidament­e gravar um vídeo do evento e compartilh­á-lo com o mundo. Isso é revolucion­ário, e eu acho que o efeito social disso vai continuar a aumentar ao longo da minha vida.

 ?? Rebecca Blackwell/Associated Press ?? Cartaz na Cidade do México mostra Donald Trump como se fosse Adolf Hitler durante protesto contra o atual presidente dos EUA
Rebecca Blackwell/Associated Press Cartaz na Cidade do México mostra Donald Trump como se fosse Adolf Hitler durante protesto contra o atual presidente dos EUA

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