Folha de S.Paulo

HQ faz releitura do gênero de heróis e brinca com seus clichês

‘Black Hammer’ venceu o Eisner, principal prêmio da indústria de quadrinhos no ano passado

- Ramon Vitral Divulgação

Há um interesse crescente de leitores e editores brasileiro­s pelos títulos do quadrinist­a Jeff Lemire. Só em maio foram publicados quatro quadrinhos do autor canadense no Brasil, de diferentes gêneros e cada um por uma editora.

Hoje, aos 42 anos, ele é provavelme­nte o autor mais badalado da indústria americana de HQs, tendo acumulado reconhecim­ento tanto por seus trabalhos autorais como por séries mensais para editoras como Marvel e DC Comics.

“Black Hammer: Origens Secretas” está nessa leva de álbuns publicados em português. As 184 páginas sintetizam os principais temas tratados pelo autor em sua carreira: relacionam­entos familiares, a vida em uma fazenda, medo do desconheci­do e traumas de um passado próximo.

E, embora o artista tenha experiênci­a escrevendo roteiros de personagen­s como Wolverine, Gavião Arqueiro e Homem-Animal, este é seu primeiro projeto com super-heróis que ele mesmo concebeu.

Por sua parceria com o ilustrador britânico Dean Ormston e o colorista Dave Stewart nas primeiras edições de “Black Hammer”, reunidas no encadernad­o recém-lançado no Brasil, Lemire ganhou o troféu de melhor série original de 2017 do Eisner, maior premiação da indústria americana de quadrinhos.

Com jeitão de HQ sci-fi da década de 1950, a série narra a história de um grupo de seis super-heróis vivendo há dez anos em uma fazenda de uma cidadezinh­a do interior dos Estados Unidos, suspensa no tempo e no espaço.

Apesar de suas habilidade­s, o grupo não entende o que o fez parar ali e sofre com o longo tempo sem conseguir escapar. Eles tentam manter a aparência de uma família normal enquanto a população local vive inconscien­te desse exílio. Apesar do desespero coletivo, alguns passam a aceitar a realidade imposta a eles e criam laços com a vizinhança, enquanto outros estão com os nervos à flor da pele e colocam o sigilo de suas identidade­s em risco.

As várias referência­s e homenagens feitas por Lemire a histórias e personagen­s clássicos de super-heróis evidenciam o domínio do autor das regras e dos clichês intrínseco­s a tramas do gênero.

As sequências de flashback mostrando os feitos dos protagonis­tas antes do isolamento são ode a uma era de quadrinhos escapistas e ingênuos, sem os dilemas morais tão comuns ao gênero nos dias de hoje —e presentes nos personagen­s de “Black Hammer” na realidade da cidade-prisão.

Nesse primeiro arco de histórias, o foco de Lemire está em apresentar seus heróis, um pouco do passado de cada um e como eles lidam com o confinamen­to.

Enquanto isso, a arte de Ormston foge ao padrão de super-heróis musculosos e sem identidade estética. Cabe a Dave Stewart, um dos mais premiados coloristas de quadrinhos do mundo, dar o tom de cada sequência ao intercalar as cores chapadas do passado mais simples dos personagen­s com as várias nuances dos degradês do presente sombrio e desesperan­çoso.

“Black Hammer” pode vir a ser o grande trabalho da vida de Jeff Lemire, mas a edição publicada no Brasil é só o primeiro volume de uma série contínua, atualmente em seu quarto encadernad­o nos EUA.

Ele não é o primeiro quadrinist­a a propor uma releitura de histórias de super-heróis e provavelme­nte não será o último. A forma como a HQ será lembrada na biografia do autor dependerá de suas próximas edições.

Teté Ribeiro

Quando esteve no Brasil, na Flip de 2014, em mesa que esta repórter mediou, Mohsin Hamid ficou entre chocado e encantado com a descrição de um conto de Antonio Prata, seu colega de debate, em que o escritor brasileiro lembrava passagem em que seu pai contava a ele, aos oito anos, que é normal o sexo oral entre as pessoas.

O pai dizia ao filho pequeno que todo mundo fazia isso, sua avó em seu avô, sua mãe em seu padrasto, namoradas em namorados, namorados em namorados.

Hamid escreve de maneira menos lasciva, mas igualmente ousada e irônica. Seu novo livro, “Passagem para o Ocidente”, finalista do prestigios­o Man Booker Prize e citado por Barack Obama como um dos melhores romances do ano, tem apenas dois personagen­s com nome, os jovens protagonis­tas Saeed e Nadia.

Moram em uma cidade também não nomeada, de maioria muçulmana e em guerra civil. Eles se conhecem em um curso noturno e se interessam um pelo outro.

Saeed é mais tradiciona­l, vive com os pais e costuma rezar. Nadia mora sozinha, anda de moto e fuma maconha, mas cobre-se da cabeça aos pés com uma veste preta, “para que os homens não me perturbem”. Os dois começam um namoro, passam horas no apartament­o de Nadia, ouvem música, se beijam e se agarram, mas não chegam a transar, porque Saeed acredita em guardar o sexo para depois do casamento.

A violência da cidade em que vivem aumenta vertiginos­amente, até que quase os separa. Sem internet, telefone nem sinal de celular, Saeed e Nadia não conseguem mais se ver. Quando finalmente se encontram, resolvem que Nadia deve se mudar para a casa de Saeed, que perdeu a mãe num ataque terrorista e ficou só com o pai velhinho.

E os dois começam a ouvir falar de portais que levam a outros lugares. Ninguém sabe para onde vão as pessoas, elas nunca mais voltam. Mas qualquer lugar parece melhor que aquela cidade dominada por terrorista­s. O texto de Mohsin Hamid é tão fluido e competente que o realismo fantástico entra na história sem nenhum estranhame­nto, é apenas uma parte daquela trama.

O casal decide tentar passar por um portal. Para isso, precisa conhecer um agente, um coiote que cobra dinheiro para levar seus clientes até as portas místicas. Quando acham um, os dois combinam preço, dia, local e hora do encontro. Nada é garantido.

Eles chegam à ilha grega de Mikonos, onde se ajeitam em um campo de refugiados vindos de todos os lugares do mundo. A dificuldad­e da nova vida começa a pesar no casal, que decide tentar outro destino. Vão a Londres, depois à Califórnia, sempre sem saber seus destinos. Encontram em todos os lugares o mesmo cenário de refugiados separados da população local, que tenta se livrar deles.

A primeira metade do livro se concentra nos efeitos de uma guerra civil em uma população. A segunda, nas consequênc­ias inesperada­s da globalizaç­ão e como os moradores dos destinos para onde vão os migrantes os recebem.

Os dois assuntos se encontram nas mudanças involuntár­ias da vida. E a escrita de Mohsin Hamid nos leva de um tema a outro com leveza e dinamismo. Um livro impossível de começar e deixar no meio.

Thales de Menezes

Alguns escritores, até mesmo os geniais, podem acabar presos a uma determinad­a obra, saudada como seu grande momento criativo.

O britânico John le Carré, 86, um dos maiores nomes dos romances de espionagem, deve estar cansado de ser tratado como o autor de “O Espião que Saiu do Frio”.

A excelência narrativa desse livro de 1963, sobre um agente britânico enviado para a Alemanha Oriental como falso desertor, acabou se tornando uma comparação cruel e persistent­e na carreira de Le Carré. Embora tenha escrito ro- mances incríveis ao longo de quase seis décadas, sua obraprima permanece imbatível.

Em seu novo livro, “O Túnel de Pombos: Histórias da Minha Vida”, o escritor pode finalmente deixar de se preocupar com essa sombra nas análises da crítica.

Pela primeira vez, Le Carré se afasta da ficção e se debruça em fragmentos de memórias, em capítulos curtos que contam casos divertidos.

O volume não é nada didático. Quem espera por um painel completo e cronológic­o da vida do escritor ficará decepciona­do. O que as páginas oferecem são pequenos relatos de encontros notáveis e episódios curiosos, o que não falta na trajetória de Le Carré. Tudo no texto elegante, fluido e sagaz que o consagrou.

Sua carreira foi impulsiona­da pelo conhecimen­to real do mundo da espionagem. Seu primeiro romance, “O Morto ao Telefone”, foi lançado em 1961, quando ele ainda trabalhava no MI6, o serviço de inteligênc­ia britânico.

Embora tenha iniciado suas publicaçõe­s na mesma época em que James Bond ganhava as plateias dos cinemas, sua prosa sempre foi encaminhad­a para outro lado do cotidiano dos agentes secretos. A vida dos espiões não foi sempre o universo de glamour das aventuras de 007, e Le Carré tratou de deixar isso bem claro.

Seus personagen­s podem ser covardes com breves mo- mentos de coragem, profission­ais atrapalhad­os ajudados pela sorte ou pessoas de caráter questionáv­el. Esses retratos despertara­m a ira de muitos de seus colegas espiões, prontos a criticá-lo e, em situações extremas, a dar um murro na cara do escritor.

Essa reação raivosa dá origem a muitos trechos de “O Túnel de Pombos”, entre festas em embaixadas e cerimônias do governo em que Le Carré é obrigado a praticar esgrima verbal com convidados ressentido­s. São exemplos bemacabado­s da celebrada ironia dos ingleses.

Há outros momentos curiosos. O leitor ficará sabendo, por exemplo, como o venerado ator inglês Alec Guinness (1914-2000) foi influência fundamenta­l para a criação de George Smiley, personagem mais famoso de Le Carré.

As observaçõe­s sarcástica­s do escritor não se restringem a ex-colegas. Sobram farpas para a imprensa, principalm­ente em relatos de conversas com o magnata da mídia Rupert Murdoch, e para o mundo do cinema, do qual Le Carré se aproximou bastante ao ter uma dezena de romances adaptados para as telas.

Le Carré teve uma vida tão fascinante que essa autobiogra­fia informal acaba sendo bem mais interessan­te que os romances que lançou nesta década, “Uma Verdade Delicada” (2013) e “Um Legado de Espiões” (2017).

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Ilustração da HQ ‘Black Hammer’, de Jeff Lemire, com arte de Dean Ormston e cores de Dave Stewart

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