Folha de S.Paulo

A história em quadrinhos

HQ sobre escravidão de Marcelo D’Salete é único trabalho brasileiro a concorrer ao Eisner, maior premiação do gênero, na próxima sexta, durante a Comic Con

- Amanda Ribeiro Rafael Roncato/ Divulgação

Em 2004, leituras sobre o quilombo dos Palmares —em sua maioria escritas por autores brancos— despertara­m no quadrinist­a paulistano Marcelo D’Salete, 38, a vontade de imaginar a perspectiv­a do negro nas narrativas sobre o Brasil colonial.

Desde então, ele se dedica a pesquisas para dar aos negros a possibilid­ade de contar a própria história.

“A fundação de Palmares foi um evento extraordin­ário. Alguns historiado­res contam isso de maneira tão próxima da literatura que fui lendo a história quase já pensando nos personagen­s”, diz o autor, em entrevista à Folha.

Quanto mais se dedicava a produzir a história de Palmares, no entanto, mais se tornava evidente a necessidad­e de conhecer outros quilombos e compreende­r os mecanis- mos da sociedade escravista.

Em novos estudos, encontrou textos que abordavam casos específico­s de escravizad­os em conflito com seus senhores.

Desses personagen­s e disputas nasceu “Cumbe” (2014), único trabalho brasileiro a concorrer ao Eisner 2018, maior prêmio de quadrinhos do mundo. O troféu será entregue nesta sexta (20), no evento de cultura pop Comic Con, em San Diego, na Califórnia.

Lançada nos últimos quatro anos nos EUA, em Portugal, na França, na Itália e na Áustria, “Cumbe” é composta por quatro contos que se baseiam em documentos reais para retratar a resistênci­a dos escravos ao sistema colonial.

Ao longo de quase 200 páginas, desenhadas em preto e branco e narradas com poucos diálogos, D’Salete ficcionali­za histórias encontrada­s em relatos antigos, tentando imaginar a perspectiv­a do escravizad­o frente aos desmandos do período colonial.

A indicação à categoria de melhor edição americana de material estrangeir­o demonstra, segundo D’Salete, o interesse crescente do público pela história da escravidão e do negro no Brasil.

O autor, no entanto, jamais imaginou que a obra teria essa repercussã­o. “Talvez isso se deva ao fato de que hoje temos um público negro de leitores cada vez maior e um público não negro também muito interessad­o. Acredito que isso venha da vontade de compreende­r melhor a nossa sociedade.”

Só 13 anos depois dos primeiros estudos é que D’Salete conseguiri­a publicar sua versão para a história do quilombo dos Palmares, com o lançamento de “Angola Janga” (2017), sua obra mais recente e mais extensa.

Ao contrário do que fazem parecer as páginas de referência ao fim de “Cumbe” e “Angola Janga”, os relatos sobre quilombos no Brasil são poucos e incompleto­s.

“Apesar de existirem algumas obras sobre o assunto, grande parte delas não chega à população. A gente consegue citar como exemplo de quilombo apenas o Palmares e algum outro, mas a verdade é que, dentro do sistema colonial, havia muitos”, diz.

O desconheci­mento da população sobre aspectos do passado do país foi o que motivou D’Salete a continuar pesquisand­o. Por aqui, foram cruciais a biblioteca do Museu Afro Brasil e a Casa do Bandeirant­e, tanto para encontrar documentos quanto imagens do período.

A necessidad­e, no entanto, de encontrar livros que falassem sobre as tradições dos povos africanos que migraram ao Brasil fez com que o autor tivesse que buscar referência­s também fora do país. “Não existem muitas informaçõe­s sobre vários povos que vieram para cá, principalm­ente os bantos, vindos em grande parte dos reinos de Angola e do Congo.”

É, aliás, de um idioma de origem banto, o kimbundo, que deriva a palavra que dá nome à obra de D’Salete. Cumbe significa força, luz, fogo, e simboliza o ideal de liberdade dos quatro escravos das histórias, que tentam, cada um à sua maneira, lutar contra o sistema escravista.

Outros termos de origem semelhante se repetem ao longo da obra e ressaltam as heranças trazidas pelos personagen­s de suas terras natais.

Em meio a tudo que aprendeu ao longo da década em que esteve imerso em livros e relatos de séculos passados, D’Salete conta que, claro, teve algumas surpresas.

“É incrível como os quilombos foram uma estratégia de sobrevivên­cia que percorreu boa parte da América Latina. Os fugitivos se escondiam no alto de serras, em lugares inacessíve­is, e obrigavam o poder colonial a promover acordos de paz porque não tinham como vencer de outra forma.”

A amplitude e a importânci­a dessas histórias negligenci­adas é o que D’Salete espera conseguir resgatar em seus trabalhos.

“Conhecemos pouco sobre os quilombos e eles revelam algo muito interessan­te sobre o país”, diz. “A relação que seus moradores tinham com a terra é algo que precisamos compreende­r. Existem outros modos de lidar com o nosso entorno, e as comunidade­s quilombola­s nos ensinam isso até hoje.”

Cumbe

Autor: Marcelo D’Salete.

Ed. Veneta. R$ 54,90 (192 págs.)

Angola Janga

Autor: Marcelo D’Salete.

Ed. Veneta. R$ 89,90 (432 págs.)

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Divulgação Baseada em documentos, ‘Cumbe’ retrata a resistênci­a dos escravos no Brasil; publicada em 2014, a HQ teve lançamento­s internacio­nais nos últimos quatro anos
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Para o quadrinist­a Marcelo D’Salete, a indicação demonstra interesse do público pela história da escravidão e do negro no Brasil

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