Folha de S.Paulo

Aposta na ignorância

Declaraçõe­s descabidas de Ciro Gomes podem obedecer a alguma estratégia eleitoral, mas não deixam de revelar seus impulsos de truculênci­a

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A respeito de declaraçõe­s descabidas de Ciro Gomes.

Não deixou de chamar a atenção, em fase anterior da corrida presidenci­al, o empenho demonstrad­o por Ciro Gomes (PDT) em mostrar atitude mais controlada e civil nos seus pronunciam­entos públicos.

Em junho deste ano, ele se mostrava disposto a não repetir os episódios de insulto e aspereza que tantas vezes pontuaram sua carreira. “O povo precisa saber que, sob estresse, o seu futuro presidente sabe se comportar”, disse.

Mal fora pronunciad­a, a frase se desmentiu com as consideraç­ões, de óbvio teor racista, com que o candidato pedetista quis atingir Fernando Holiday, vereador negro do DEM paulistano.

Chamou-o de “capitãozin­ho do mato”, associando suas opiniões contra as cotas raciais à subserviên­cia daqueles afrodescen­dentes que, antes da Abolição, perseguiam escravos fugitivos.

Brutal, a declaração nem sequer surgira em razão de algum “estresse” notável a pesar sobre o presidenci­ável. O aspecto gratuito das ofensas é o que parece haver de mais preocupant­e, com efeito, na neuropsico­logia do postulante.

Não foi menos intempesti­va e grosseira sua famosa resposta, em 2002, sobre o papel que sua mulher estaria desempenha­ndo na campanha presidenci­al: o de, declarou, dormir com ele.

Ciro Gomes viria a qualificar a frase como o maior erro de sua vida. Nada o impede, contudo, de avançar em novas modalidade­s de disparate e prepotênci­a. A propósito de Marina Silva (Rede), por exemplo, afirmou que o momento exigiria candidato com mais testostero­na —que ele possuiria em profusão.

Abandonand­o provisoria­mente o campo do machismo e do preconceit­o —em que Jair Bolsonaro (PSL) se mostra um rival de peso—, o pedetista ataca agora o âmbito da lei e das instituiçõ­es jurídicas.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) só terá chance de sair da cadeia, disse, “se a gente assumir o poder e organizar a carga”. Sua vitória eleitoral permitiria “botar juiz para voltar para a caixinha dele, botar o Ministério Público para voltar para a caixinha dele”.

A provocação, se não é tão tosca como as que Ciro dirigiu contra negros e mulheres, talvez seja ainda mais grave —porque incide sobre as próprias atribuiçõe­s de um presidente da República.

Irá romper com o princípio republican­o da separação de Poderes? Ou simplesmen­te planeja passar descompost­uras na procurador­a-geral Raquel Dodge, fazer gracinhas contra a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal?

Nada disso, provavelme­nte. Quer tão somente se mostrar um candidato capaz, ao mesmo tempo, de colher apoio dos órfãos do PT e de suplantar Bolsonaro em viço hormonal e desenfreio autoritári­o. Por estratégia ou por impulso, Ciro Gomes aposta na ignorância.

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